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O meu tempo de agora corre com a memória
Não por qualquer desejo de juventude
Ou saudosismo pelo elo perdido
Tão pouco por arrependimento ou narcisismo
Por ter deixado algo por cumprir
Nem vontade de desfazer o percurso
Tenho muito orgulho na minha capacidade de transformação
E no próprio lugar da imaginação no fortalecimento e determinação
A ligação ancestral é mais ampla e sedutora
São os laços de ligação socio-genética e à terra
O sangue e as veias que ligam ao ventre e à natureza
As vivências que contêm histórias
O aroma a criança e a contingência do mundo e da corrida
Assim como a proteção pela idade
Maior ainda no orfandade da vida e do catecismo
Foi nessa memória que me fiz gente e defini um rumo
Mesmo na incerteza fiz fincapé ao destino
E aceitei o encantamento da vida e da existência
A descoberta do mistério e da esperança
José Gomes Ferreira
A geada cobre tudo de um manto branco
Naquele frio que agora estou a imaginar
O vidro dos carros parece bordado de gelo
O nariz pinga como chuva celeste
Também o Sol surpreende
Tem dias em que se atrasa na chegada
Em outros surge brilhante e encantador
A luz de Inverno traz imagens de cinema
Com uma beleza fixa que dá vontade de mostrar
Somente a temperatura arrepia no confronto
As chaminés precisam marcar de fumo a paisagem
Ainda assim as casas ajudam no bater dos dentes
Na rua não serve qualquer agasalho
Mesmo que ao longo do dia o corpo apareça suado
O anoitecer é sempre rápido e antecipado
O convívio nocturno é reduzido a um até amanhã
Admirar a Serra cobra toda a saudade da distância
José Gomes Ferreira
As noites são apertadas em rodopios
Na curta escolha do descanso
Dormimos fora dos corpos e do desejo
É a ansiedade e latência que toma conta de nós
Liga-nos com transmissores ao mundo concreto
Ao correr catalítico pela sobrevivência
Ao incitar obrigatório das conquistas
No dia a dia gritam-nos que deveremos vencer
E fazer ver a qualquer parente e vizinho
A noite acaba mesclada entre a necessidade de repouso e a fúria da conquista
É a Lua passageira que difere nas alucinações
Trazendo serenidade à própria imaginação
É necessário fechar os olhos e abrir o coração
Fugir da materialidade competitiva das escolhas
Dar razão ao amor e à empatia
Teremos sempre as nossas lutas
Não podemos desmaiar nas pressas e perder a consciência
O resultado da anomia é o descaso com o sentido da vida
José Gomes Ferreira
Não te culpo e não te arrasto
És brisa que pode acariciar o meu rosto
Não te peço perdão e não me rebaixo
O tempo não cura, mas constrói novos lembranças
Se tiver mistério está no passar dos anos
Na construção de novas histórias
Não adianta qualquer tipo de competição
Nem ofender as memórias
O que lá vai já passou
A única coisa que importa é viver o momento
Subir no alto das montanhas e respirar
Abrir as cancelas para cruzar o campo ainda imaculado
Sorrir com as imagens que se colocam
E com tudo o que destino e a coragem permitem
Não te culpo nem te trago no peito
A melancolia estraga o ordenamento das sobrancelhas
E altera o sabor dos beijos remotos
Movimentando estruturas leves
Deixando o que foi transformar-se em angústia
Não te culpo ou recordo
Apenas pontuo a presença no tempo
Não quero deixar o calendário em branco
Nem o coração vazio da própria identidade
José Gomes Ferreira
Julgam o amor pelas suas maneiras
E por ser a utopia perfeita da relação
O problema é quando exagera nas peneiras
E deixa ferido o outro coração
O amor é o imaginário do poeta
Na convergência da vontade do leitor
Não é a acção do cupido com a seta
Nem a beleza que agrega o compositor
Pelo meio segregam os planetas
E colocam em dúvida as paixões
Cada etapa tem várias estafetas
Em todas elas se constroem representações
Nem todo o amor é completo
Juntando afecto, respeito e desejo
O amor pode ser inveja por um objecto
E a imaginação interrompida por um beijo
José Gomes Ferreira
Não sei se a idade me cansa ou acelera
Na distância que se faz nostalgia
Em toda a lembrança trazida
Nos fios de ouro e era
No hábito de sempre me fazer presente
Sinto falta do cheiro a terra
Na chuva que corta o pó
E atravessa a vinha e o olival
Como quem perfuma o mundo
E rega as raízes em espera
Sinto saudades da brisa de Outono
Das cores que dão encanto à paisagem
E da necessidade nocturna de aconchego
No resto da conversa na esplanada
Sinto saudades do abraço regado
Nas tiras de pão, carne e vinho
Com histórias de encontros vividos
Nas paisagens para além do coração
E que ficam para sempre se recordar
Sinto falta do sangue que motivou a nascença
E se perpetua nos laços de afecto
Que na distância são diálogos
Capazes de fazer vacilar a preocupação
E que se repetem na frequência dos dias
José Gomes Ferreira
Não quero três Salazares
Na verdade não quero mais nenhum
A história já deixou a sua marca
Não se muda ou reinventa
Tudo o que se pede em nome dele é falso
É bafiento, adúltero e enganador
Tem quem lance bombas com ideologias do passado
Com ideias que hoje não mudam nada
Apenas causam atrito e fazem levantar algumas bandeiras
A democracia cometeu muitos erros
Ninguém nega a ilusão do desenvolvimento
Mas denegrir o que foi construído é má fé
Pouco importa o papel do ditador
Não adianta idolatrar a figura no mito de D. Sebastião
Quem transforma Portugal são os portugueses que cá estão
Não os artefactos com as quais querem manipular a sua identidade
Portugal é dos portugueses e de quem luta por si e pelo país
Qualquer incidência de rejeição é de quem ignora a diáspora
E usa a propaganda para afagar o ego
Não se trata de esquerda ou direita
A dignidade e o respeito são princípios universais
Deixem de escarrar no povo e fomentar ódio e divisão
A dignidade da pessoa está na sua luta
Não é lida na cor da pele, religião ou classe
José Gomes Ferreira
Tem quem ache tudo inteligível
Nas surpresas da própria idade
Não vou mentir sobre o coração
E nos gigantes que fingem saudade
O amor nem sempre tem a porta aberta
Mesmo que se apresente com boas intenções
Não é no poder ser que distingo o bem do mal
Tem sempre encontros e desencontros
A vontade é um superlativo de emoção
Tenho muito que devo querer
Sem que a escolha desfigure a influência
E leve a brisa dos olhos à mão
A vida não acontece sem paixão
É também o que liberta o olhar
Sem o medo do que se venha a sobrepor
Nas diversas camadas de tanta verdade
José Gomes Ferreira
A minha avó sempre dizia
"Sem trabalho nada vem"
E assim me convencia
A no futuro ser alguém
Já a minha mãe insiste
Ser importante a ambição
Se quem vence resiste
É necessária muita dedicação
O povo tem as suas narrativas
E aplica as suas preces
Pode estar errado nas iniciativas
Incentiva a aumentar as chances
Assim tenho ido à luta
Não espero que a saudade me apresse
O destino não é uma certeza absoluta
Procuro na vida reforçar o interesse
José Gomes Ferreira
Mexida num corpo de véu
A Lua expõe a volúpia que sente
Babando os olhares humanos
Na incandescente presença
É a Lua e toda a paixão
Na eterna saudade do que vem
Não precisa saudosismo na Terra
Tem o roçar da carne na imaginação
Morde a língua quem se atrapalha
E engole preventivamente a sedução
Cobrindo as faces de claro e escuta
Como carícia no rosto em ternura
De beijos tão vorazes que reclamam educação
No desejo que quebra a noite em delírio
Tentando não perder os aromas e gestos
Chegando ao ponto em que a luz ilumina o coração
José Gomes Ferreira
Os meus pés podem ficar cansados
As minhas pernas tombarem exaustas
Tenho percorrido por aí muitas estradas
As vivências permitem abordar outras pautas
É muito chão para percorrer
Em qualquer região do sertão
No isolamento o povo roga a Deus para o socorrer
Muito tem de aguentar o seu coração
Não muito distante vê-se a flor da craibeira
Caindo com a luz do Sol
O amarelo é a sua cor verdadeira
O solo cru é o seu lençol
Os urubus planam nas margens
Devoram qualquer animal morto
A caatinga é um extenso local de pastagens
Pelo meio vê-se muito gado solto
Por trás do sonho o clima escaldante
Na porta de casa uma rede
A identidade esconde a sua amante
O colorido do horizonte grita que tem sede
O sertão tem montanhas e planuras
Vegetação verde e seca na devida estação
É território de representações e lutas
De muita fé para o povo ganhar o pão
O Nordestino é antes de tudo um resistente
Diz a literatura e a pele torrada
Tem também muito desobediente
Finge que cachaça não passa de limonada
José Gomes Ferreira

Esqueçam o cão raivoso
E o filho submetido à boa educação
Crescer é escutar outras influências
E deambular pela incerteza
Não pensem que a vara de marmeleiro resolve tudo
Nem o chinelo voador no lombo
Os tempos mudaram radicalmente
Não existem soluções milagrosas
Somente a escuta e o diálogo asseguram envolvimento
Tem quem acuse os outros de não cumprirem o seu papel
Na verdade cada um sabe de si
Muitas vozes críticas são de quem deserda os filhos
E de quem se afasta da sua responsabilidade
Se fosse fácil os filhos brotavam como rosas
Sempre belos e vigorosos para encanto dos pais
Não atirem nenhuma pedra, todos os telhados são de vidro
José Gomes Ferreira
No sono intenso da política
A polidez sonâmbula da devoção
As bandeiras no ar agitadas
Palavras de ordem acompanham a banda
Não é arte, mas é o princípio da ilusão
Todas as ideias são filtradas
Permitidas apenas a quem define a estratégia
Aos outros dá-se o chamamento do problema
Fala-se com intenção de disputa
A palavra morna não gera apoiantes
É o discurso falseado que inflama
Depois é só ir substituíndo o combustível
E levar todos os dias o abastecimento à língua
Quem acorda será tratado como inimigo
Podemos até culpar as vacinas do destrato
Acusando os efeitos de perseguição
O tom democrático é solto no engano
Mas é a força que aparece na multidão
Ainda se grita por liberdade
Mesmo que a proposta seja de erradicação
Estuprando a plena consciência
Proclamando obediência ao líder e à nação
José Gomes Ferreira
Não se trata de discutir o certo ou o errado
Na sensibilidade que deixa a paixão
Ninguém quer saber como ficar arrumado
No negócio que leva à dor do coração
Das histórias sobram as que tanto contam
Só muito poucas são verdade
As relações nem sempre se complementam
E nem sempre revelam humildade
O dinheiro é o que mais encanta
Os beijos são para quem esquece
Dormir no Inverno é com uma manta
Somente enrolados se aquece
No amor parece tudo uma dança
Com argumento, imagem e narrativa
Os pares escolhem-se por semelhança
Tem quem aceite se acomodar por tentativa
José Gomes Ferreira
Uma sociedade que troca a elevação do discurso político por expressões de ódio e violência só pode ser uma sociedade violenta. O próprio apontar da culpa para esquerdistas ou extrema direita, assim como para estrangeiros, é uma forma atroz de violência. Chegámos ao ponto de ruptura do que seria a empatia, o nosso ego é maior que o coração do vizinho. Nesse sentido, já não se dá a mera disputa por uma vida melhor ou pelo melhor argumento, mas por sangue e sacrifício. Precisamos inverter este rumo antes que seja tarde.
Deixa para lá o tumulto
Larga a posição na bancada
Não respondas ao insulto
Na aspereza não digas nada
Para que servem as palavras
Sem a polidez no uso
Se a língua não tiver travas
E a aridez será um grande abuso
Chamam Jesus na aflição
Lembram a natureza na catástrofe
Tem muito pecado sem perdão
E muito política de regabofe
Na vida chegamos e partimos
Atravessamos muitas paragens
Na euforia também rimos
O melhor da vida são as viagens
Cuidado com a utopia capitalista
E a ilusão do livre mercado
Não vá o defensor escorregar na pista
E o amor dogmático ser marcado
José Gomes Ferreira
Ouço vozes e não enlouqueci
Não dominaram o meu pensamento
Ouço até o coração solto
E não ficou parado nas paixões
Ouço também o vento
A brisa de Outubro a sacudir o amarelo das craibeiras
Escuto igualmente os pássaros e o movimento
Escuto ainda um cão na vizinhança
Certamente espera comida
Não experimento nenhum exercício
São os sons da vizinhança no amanhecer
Podem equiparar-se a expressões de ruído
Só não se sobrepõem à lucidez e à consciência
Os raios de Sol são silenciosos
Porém escuto-os a tocarem a alma
E a dominarem de brilho e encanto a natureza
Ainda me é dada a possibilidade de audição
Ao acordar procuro não escutar o mundo
Primeiro deixo-me envolver no pequeno universo que me rodeia
Daí vem a paz para alimentar os dias
E dialogar com as intenções da imaginação
José Gomes Ferreira
* Está tombada, mas é uma craibeira ou ipé amarelo.

Sopra um vento fresco no leito do rio
Sacode o pó e as ervas restantes
Terá de esperar pela invernia para viver as próximas enchentes
Agora é apenas terra seca e memórias
O gado escolhe as raras sombras verdejantes
Tem um poço artesiano de água salobra
A esperança no sertão chama-se fé
E resistência pacífica ao Sol tórrido
Ali também não chega a atenção de quem decide
A tez e o suor do rosto humano revelam a gratidão do nordestino
E a paz que a nostalgia do campo junta à dignidade do passado
Uma cisterna destaca-se adormecida
O abandono da zona rural deixou algumas casas em ruínas
Escutam-se os pássaros a escolher a refeição
Não tem por ali urubus declarados
Em outros pontos desfaziam cadáveres de animais
Limpando a pele e os ossos em angústia
As cancelas não dividem apenas propriedades
Separam as diversas ondas de ruralidade
E domínio sobre o terreno plantado de arbustos naturais
Tão robustos como a imponência de quem resiste
O caminho é de solo solto e pedras miudinhas
Não é possível imaginar a romaria de gente que atravessou aqueles territórios
Nem quem definia o mando na exuberância da extensão
A paixão pelo lugar é uma linguagem de combate contra a aridez da decisão
O esquecimento está apenas do lado de quem não se move por afectos
José Gomes Ferreira
* Fim de semana em actividade de campo, com passagem para almoçar na zona rural de um município do que se pode chamar Nordeste ou sertão profundo.



Em tudo colocamos uma meta
Mas não na pretensão utilitarista
Sim na vontade de se fazer futuro
De garantir um modo de vida
E de se traçar uma herança de laços
Talvez seja de outras gerações
Sinto ainda o gosto pelo vinho da pipa
E pelo leite que ia buscar no final do dia
De ir sentado na carroça e sentir a paz que falta ao mundo
Escutando o rodado sobre terra firme e algumas pedras
Talvez por isso lute para superar memórias insuperáveis
E deixar o incentivo da preposição e criação
Não gosto de seguir para dar apenas resposta à questão
"Que benefício retiro com essa participação?"
Pergunto-me apenas se a minha participação será válida e se posso inspirar quem me escuta
A minha estética é a da natureza e do silêncio
Da rarefação da vontade sobre a necessidade de transformação
Tudo mais supera-se na abnegação e no destino
Não se esperam facilidades, a vida é um superar de desafios num espelho de encantos
Tem momentos em que tudo parece correr mal
Com perdas que nos marcam e retrocessos nos sonhos
Honra, fraternidade e gratidão são escolhas na passagem
Marcam a dignidade e a esperança ao nosso dispor
Essa é a força que não deixo de procurar em mim
E de espalhar na profusão de opções de aromas, paisagens, rostos, construções e a obra da imaginação
José Gomes Ferreira
O ciclo da vida por vezes fecha-se rápido
Não se trata necessariamente de se dizer o quanto gostamos das pessoas
O apreço e o respeito podem ser ditos através de um sorriso
De uma evocação em instantes de narrativa
Trata-se também das vivências internas
Da própria vivência do ser e do entendimento desse ciclo
Da análise do que somos como seres
De que importa correr tanto se não somos nada de um momento para outro
Viramos pó de memória no choque das notícias
O coração deixa de bombear o sangue em corpos que se despedem
O sentimento é mais súbito ainda no adeus
Celebramos mais as pessoas na morte
Durante a vida são acolhidas na rede sanguínea
No entrelaçar de agendas e de um vou aqui e ali
E tudo se dá na troca e reprodução de desvios e encontros
José Gomes Ferreira
* Ontem pela manhã partiu para a luz eterna uma amiga, outrora colega de trabalho, investigadora, mulher de trato delicado e luta. Cruzei-me com ela ainda durante os estudos, partilhei gabinete e muitas ideias sobre a vida. Tínhamos falado no início do meu, pediu-me desculpa pela demora na resposta, confidenciando que andava doente. Praticamente uma semana depois, ontem pela manhã, tive notícia da sua partida. É um momento triste, mas a vida é um ciclo curto, nunca nos prepara para as despedidas.
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