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Aristides foi consul
Que não se permitiu obedecer
Salvou vidas, marcou famílias
Andou esquecido
Foi esquecido ao morrer
Tão homem e humanista
A ditadura vetou-lhe o futuro
Aristides agora foi honrado
Num clima de euforia
Que mais parece oportunismo
Apoiado por quem rejeita o que defendeu
Até parece que os tempos são outros
Aristides não é só turismo
É identidade e valores
Sentido de justiça e liberdade
Ícone para quem transgride
E na luta oferece a própria vida
Aristides não cospe no prato
Nem venera ditaduras
É exemplo de coragem e altruísmo
Viva Aristides! Aristides vive!
José Gomes Ferreira
* Lembro do impasse na recuperação da Casa do Passal, de Aristides de Sousa Mendes, em Cabanas de Viriato. Tenho certamente fotografias desse tempo, era frequente dar uma voltinha de bicicleta pela região, ou também visitar a localidade na segunda-feira de Carnaval, tem a famosa Dança dos Cus. Fico feliz pela recuperação das instalações, o que me entristece é saber que tem quem agora o aplauda, mas defende princípios contrários.
Para quê um desejo escondido
Se o amor já se acabou
Para quê um nariz comprido
Se ninguém sabe por onde andou
Se não foste convidado
Vê por onde andas
Estás solteiro e não casado
Se bebes muito certamente tresandas
Homem livre chama a atenção
Gosta de passar por atleta
Diz ser paz o que é solidão
E reforça que é essa a sua meta
A sua sorte não tem segredo
Só não sei se tem aptidão
Vence primeiro o medo
Depois apazigua o coração
José Gomes Ferreira
Indica-me o caminho
Para encontrar essa peste
Esconde-se num quadradinho
Fala em reportagem de podcast
O cidadão agora é danado
Pode esconder-se na informação
É juiz e réu julgado
Acha que tem sempre razão
Recorre à inteligência artificial
Chega a plagiar suspiros
Esquece que nem tudo é natural
Chama abóbora a diospiros
Mas que cidadão obsoleto
Chega a ser Hilário
Troca o altar pelo coreto
Exagera na função de estagiário
José Gomes Ferreira
O amor não me prende
Mas me faz respirar
Haverá beijo que sinto
Sem dizer como é bom amar
Deixo o amor nos sonhos
E o desejo para amanhecer
Se tem brilho fica nos meus olhos
Do coração ninguém pode falar
Tem luz que lembra sentimento
De tão pura e cristalizada
Recordo os bons momentos
A ruptura não me lembra nada
José Gomes Ferreira
A aparência faz tudo
Trata da diplomacia e sedução
Chama para sair e para dormir
Faz negócios e trata do futuro
A aparência mobiliza milhões
É a indústria da estética
Das flores e dos aromas
Das jóias e dos têxteis
É também a indústria automóvel
Dos restaurantes e do turismo
Assim como é celebração de nomeações
Corpos cheirosos são eleitos
Corpos suados são latência
Exclusão da veneração
Falta de etiqueta
E de jeito para se apresentar
Falta de adesão ao consumo e ao cuidado
José Gomes Ferreira
* Uma das regularidades sociais que me impressiona pela sua transversalidade na verticalidade das classes sociais brasileiras é esse ideal tipo segundo o qual uma pessoa deve ser cheirosa, o que provavelmente é um resquício de uma certa vaidade colonial que se perpetuou no tempo, coisas ligadas ao aburguesamento como sinónimo de modernidade, em que foi marcante o exemplo francês. É comum pobres ou ricos identificarem o ideal de companheiro ou companheira como alguém cheiroso. Confesso não ter em boa conta o destaque exacerbado dessas escolhas.
Se disser que a laranja é verde vão achar que enlouqueci
Pois laranja é laranja na cor
Os portugueses trouxeram a laranja
O clima pintou a cor
A laranja característica do Brasil é verde
A laranja da Bahia é laranja
Assemelha-se à do Algarve
Não é apenas uma questão de cor
A laranja verde é mais compacta
Os gomos nem sempre se soltam facilmente
O mesmo acontece com a casca
O sabor é igualmente distinto
Ainda sinto o corpo e a brisa
O coração ainda bate
O amor é relaxado
Trazido como utopia do encanto
Não como utopia de felicidade
Essa realiza-se no quotidiano
Nas paixões executadas
Ainda sinto o corpo e sonho
Sinto saudade dos meus
Da paisagem que atravessa a memória
Contemplo o silêncio estival
E vivo as pressas nas etapas
Qualquer reza seria uma promessa
Já estou no caminho
A vontade de novas escolhas está em curso
Ainda sinto o corpo e abraço
Repito-o sempre que me reencontro
E na empatia ao cruzar semelhantes
José Gomes Ferreira
Desdobramentos
Estou a terminar o que seria um pequeno período de férias académicas, mas afinal as férias são para as aulas da licenciatura, na pós-graduação o calendário é outro. Na verdade tenho ainda o calendário da outra universidade na qual sou professor voluntário. Mais uma semana e retomo as aulas da licenciatura. Felizmente levo tudo com leveza, dar aulas, realizar extensão e investigação é algo que me completa.
Estes dias foram bastante intensos, gosto de desafios e de os propor. Com tudo isso foi enorme a escrita e não falo da escrita no blog, essa é em momentos de pausa para café. É verdade, ainda dou uma mãozinha como consultor numa instituição. Rico não fico, só não quero é ficar louco.
Sei que este não é o meu país, na verdade já tive valentes dores de cabeça para renovar a autorização de residência. De nada servem, para os portugueses, os acordos bilaterais Portugal - Brasil. Não é por isso que não me entrego ao que faço. Sei que tenho espírito de emigrante, foco no trabalho e em poupar. Faz parte da forma de lidar com a distância. Não fico sempre em casa, gosto de sair. Evito excesso de bebida por razões de saúde, mas tento estar presente em alguns encontros com os vários amigos que tenho feito.
Uma das cidades na qual moro, Natal, tem como que o lema: moro na cidade na qual passas férias. Não vou falar muito da cidade, a ela aplica-se o princípio: o Brasil (Natal) não é para principiantes. Sem esquecer que é uma cidade dita de abençoada por Deus. Todo o estado do Rio Grande do Norte é. Tem lugares fantásticos. Só precisa de estradas, combater a insegurança e resolver uma centena de outros problemas. Vou a caminho de 9 anos por aqui, o último semestre repartido com a Paraíba. Vamos ver se aproveito estes dias, somente fui caminhar uma vez até à praia de Ponta Negra.
O impulso para a escrita vem da experiência com a enxada na mão
Na época lia jornais ardidos pela luz
Comprava livros de clube de leitura
Frequentava todas as bibliotecas acessíveis
Incluindo os lameiros, os olivais e as vinhas
Incluindo a lareira e a soleira da porta
Em todos esses lugares aprendi a ler, escutar e observar
Aprendi a escrever para rapidamente responder às cartas dos meus pais
Moravam em França e mandavam as boas novas
Entre uma e outra carta acertei as palavras para a resposta
José Gomes Ferreira
Sopra uma brisa de Julho pela janela
Enfrenta alguma resistência
A pele arrepia na exposição
Os pêlos sugerem atenção
É uma brisa que intercala o calor tropical
Em Julho e Agosto é característica
Arrasta folhas e papéis
Assobia nos prédios mais elevados
Chama a atenção por ser variante
Leva a chuva para fora dos arraias
José Gomes Ferreira
* é Brisa tropical pois ando na linha abaixo do equador.
Nada como um amor secreto
É emocionante e misterioso
Gera borboletas na barriga
Transforma o coração
Não tem fotos nas redes sociais
Não partilha despesas de casa
Não cobra pela ausência na educação dos filhos
Não se atrasa na subida ao altar
José Gomes Ferreira
Hoje temos dificuldade em assinar por baixo
Em dar o nosso contributo a causas comuns
A aceitar e apoiar outras opiniões
Assinamos de cruz um enlace
Mesmo que seja movido sem certezas
Temos dificuldade em assinar apoios
Fazemos mais exigências que cedências
Respondemos face à nossa adesão a cores e bandeiras
Seguimos o partido e o jogo da bola
Assinamos presenças em face dessa alusão
Também vamos à igreja e à reunião do condomínio
Vamos seja qual for a origem da motivação
Mas na hora de assinar por baixo caímos em retraimento
Quando não deixamos que a covardia marque a nossa ausência
José Gomes Ferreira
Os portugueses vão a banhos e largam tudo. Alguns precisam mesmo de ir dar banho ao cão. Durante o ano adoram animais de companhia, mas quando vão de férias esquecem-se de levar toda a família. É impressionante o tratamento dado aos animais, chamam-lhe filhos e filhas, com personificando entes humanos. Nas décadas anteriores os comentários apontavam para a centralidade das crianças nas famílias, quase transformadas em bibelot. Atualmente é essa humanização animal. Fica por saber se a mesma se repercute igualmente nas relações interpessoais, digo isto pelo facto da mesma leitura vir sempre acompanhada de narrativas quanto ao serem "mais humanos que os humanos", referindo-se à fidelidade e ao apego pelos seus donos.
Voltando à ida a banhos, dar banho ao cão é também uma metáfora à forma indiferente como encaram a vida pública, que entra em recesso no Verão, mas um recesso de um alheamento que em muitas vezes é total o ano inteiro. Claro que os portugueses têm direito a férias. Mas seria tão bom conhecerem o país para além do esturricar nas praias ou dos baldes de cerveja. Agosto é também o mês preferencial para o eclodir de conflitos familiares, são os incêndios das gerações. As idas à terra são uma marca da nossa identidade, nem tudo é praia. Falta talvez uma dedicação anual ao território e à geografia da cultura e dos afectos.
O desligamento não estival é recuperado, mas as ondas festivaleiras afastam os jovens para outras paragens. Nas vilas e aldeias florescem festas que garantem o ganha pão a artistas de TV. Esquecemos a ida à fonte e de pagar uns copos na taberna, não falhamos as feiras agrícolas e industriais recheadas de palcos sofríveis. Sinto saudades dos bailes nas noites de Verão. Não dançava, mas o conjunto de cores das lâmpadas combinava com o gosto musical e com os reencontros.
O Verão é agora imagem. O abandono dos cães não passa na actualização do Instagram ou Facebook. Não gera vergonha ou inveja. É a exuberância dos lugares e da comida que é exposta. As férias deixaram de servir de narrativa fecunda contada um mês depois. Têm transmissões em directo e passagens assíncronas, mas sem tempo a perder. Viajamos para marcar o momento e o histórico, para roer de inveja o que não temos para comer.
Tem muita escusa na declaração de autonomia para viver de dó
Sobretudo quando se reconhece que somos todos humanos
Dar o braço a torcer dói
Tem quem se ache noutro patamar
Semelhante às certezas de que os homens não choram
Guerreiro é guerreiro, homem não chora, mesmo que veja as tripas do outro de fora
Esse era o slogan heróico-popular vinculado à guerra colonial
Propaganda bem preparada pela ditadura
Ainda hoje condenamos os desertores da guerra
São representados como fracassados na narrativa do homem casto
Ignoramos que desertar é defender a liberdade
Mas tem também os desertores por conveniência
A democracia tem muitos desses desertores
Tem quem deserte do trabalho e do amor
E desligue o corpo da cidadania e da paternidade
José Gomes Ferreira
Toca o sino na Igreja
O relógio é o compasso
Nas ruas é o vento
Sacode as chapas de zinco
Limpa a chora das oliveiras
Gera crispação nos cabelos
O céu azul derrete o olhar
A serra resplandece
As vinhas soltam o aroma a pintor
Tem figos temporãos na figueira
O orvalho deixa as folhas do milho fartas
Na madrugada arrancam-se as batatas
Foge-se à hora de mais calor
A terra quente também é farta
Recolhe-se alguma milhem para os animais
A verdura será como salada na refeição
As casas já não têm vizinhos à porta
Escuta-se um tractor vindo da fazenda
Diz-se boa noite a quem passa
Já se reconhece pelo ruído típico
Regamos as flores das escadas
A humidade escorre pelos degraus
Rapidamente evapora
Os gatos parecem em competição
Derrubam paus e telhas velhas
Vêm à memória anteriores residentes
Os ciclos parecem fechar-se com o encanto da Lua
Chega a ser interrompido pelo telefone a tocar
Retoma a posição e permanece no planalto
José Gomes Ferreira
* "Retratos" lá da terra com alguns regionalismos.
Perde-se a paz e a calma
A polarização das diferenças apaga as insurgências
E retira-nos o romance e a fraternidade
A vida que vivemos é a exterior
Variada entre canais de televisão e redes sociais
Podemos ter comida na mesa
Mas prescindimos da liberdade
Parecemos uma guilhotina a cortar ideias
Os projetos para o futuro foram os de ontem
Não conseguimos viver além do instantâneo
Não temos condições para escrever a própria história
Não criamos memória e os laços são efémeros
Escolhemos os gambuzinos sem saber quem são
Depois choramos de isolamento
É a depressão do vazio e das teclas sem sentimento
Precisamos reactivar as conversas com saliva
Mesmo que chapisque o olhar
Falta-nos o brinde verdadeiro
Andamos a trocar mensagens para marcar encontros
Os dias repetidos levam-nos ao desencontro
Mesmo que os corpos se encontrem é tudo muito fortuito
José Gomes Ferreira
Presto atenção a cada detalhe
No que a vida me facilita
Não engordo a conta no banco
Não tenho amor com diferença de idade
Também não o condeno
O meu sangue não jorra na orelha ferida
Nem é azul por condição de nascimento
Também não tenho presença na televisão
Na verdade nem o meu corpo mostro na televisão
Não possuo televisão para tal exuberância
Diga-se em abono da verdade
Não corrijo a vida de ninguém
Aceito a diferença em plenitude
Não construo o meu caminho sobre competições morais
Religião, sexualidade, raça, pobreza não diminuem ninguém
Não tenho esse maldizer para me afirmar
O carácter está nas pessoas
Não nas categorias que usamos para as diminuir
José Gomes Ferreira
Extravaso as amarguras
E o delírio das matrafonas
Coloco uma toalha na mesa
Ao tapete de entrada chamo esperança
Num lenço de papel escrevo a palavra amor
Desenho algumas flores e corações
Mostro pestanas soltas
Chego a fechar os olhos
Quero personalizar o silêncio
Recolher os aromas como quem amassa pão
Sento-me à vista das luzes
Não espero ninguém
Se faltam beijos recordo-os
Recupero o fôlego e o sentimento
José Gomes Ferreira
A fé dos outros nunca me incomodou
A minha espiritualidade é a da natureza, da paz e da memória
Não é nenhuma competição entre igrejas e sacerdotes
Também não é um exercício de musculatura entre crentes
Cada um acredita no que quer
Não me cabe qualquer avaliação específica
Tanto entro numa igreja como vou à fonte
Aprecio o recolhimento e o simbolismo
Não deixo de reparar que se tratam de cosmologias dominadoras
E opções morais que se apresentam como únicas
Os cristão encaram os outros como fanáticos
O cristianismo tem telhados de vidro e os fanáticos também aparecem
Não vejo razão para tanto peso dos dogmas
O que não é motivo para me exaltar
Simplesmente não os sigo
José Gomes Ferreira
Precisamos sentir o encantamento da vida
Do mundo e da natureza
Do amor quando chega
Tudo mais é luta com estímulo
E esperança
Qualquer desejo raquítico é doença
Tão insalubre que debota
E transforma as virtudes em pecado
José Gomes Ferreira
* Debutar tem vários significados, no texto uso o termo como sinónimo de perder a cor. O título pode ainda significar despertar para nova etapa.
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