Poesia na Carne

A felicidade vem das escolhas
Não vem da conveniência
A sorte também faz milagres
A incerteza não constrói vidas
A sagacidade e persistência sim
Os mais velhos sempre souberam
Diziam que "sem trabalho nada vem"
Eram exagerados a condenar o lazer
Achavam que tinham sempre razão
Tinham razão no imperativo trabalho
A felicidade não é um estalar de dedos
Essa é a utopia do bom malandro
A propaganda das redes sociais está cheia dessas oportunidades
Investir na bolsa de valores para alguns mudou a sorte
Só não podemos generalizar casos pontuais
A frustração é inimiga da felicidade
A felicidade é um modo de vida leve
Comprometido e assumido, mas leve
A bananeira que dá mais sombra é a da conquista

José Gomes Ferreira

Pensávamos que tínhamos um amigo
Mas ele dá sinal de morto
Pensávamos fazer parte, estar integrados
Mas a tecnologia vem afinal quebrar os laços
É a modernização, dizem-nos
E apontam-nos o caminho da rua
Os jornais fecham, as rádios são vendidas
Ao mesmo tempo as notícias são miméticas e curtas
Aumenta a distância com o ouvinte
Desistem da interacção e presença nas comunidades
Suprimem as vozes que se cumprimentam sem se falarem
Os territórios são despidos das vivências
Alteram o próprio fluxo da informação
Um escândalo não dura mais de 10 segundos
A sua repetição noticiosa acontece a cada 5 minutos
É o domínio do capital, repetem-nos
Em nós fica um vazio de alma vivida
Os sonhos são trocados por cliques
Nada permanece para além do momento

José Gomes Ferreira

Até o amor se burocratizou
Para se declarar é preciso envelhecer
Para dar um beijo é necessário requerimento
Se gera confiança talvez seja amizade
Se acaba é por falta de investimento
Para ser assumido necessita de se expor
Para não gerar inveja necessita ser formalizado
Se traí é por falta de respeito
Se discorda é por não dever obediência
Para que seja aceite é preciso negociar
Para que seja para a vida deve abdicar de outros caminhos
Se é puro viu muitos filmes
Se é platónico desconhece a realidade
Para ser companheiro necessita de um contrato
Para trazer felicidade precisa controlar a língua

José Gomes Ferreira

Sempre olhei para fora, mesmo no isolamento periférico
E na contingência de classe ou estrato
Na minha timidez observava
Nunca fui neutro na posição
Observava as dinâmicas e virtudes sem intervir
Não o fiz pelo alarido da intriga
A neutralidade era guardada nos dados de observação
Não eram as conversas que me interessavam
Nem a posição de quem subia aos céus
Eram as histórias e regularidades
A singularidade do quotidiano adora a catarse da fala e das conversas
Sem esquecer que escapava para o café para ver televisão
Encantava-me pelas imagens e pelo movimento sonoro
Hoje por saturação dos elencos nem vejo televisão
Na época era uma viagem ao universo
Cruzava com submarinos e planetas
Descobria a luz do Sol no filtro da superação
Assim tinha a certeza da existência de outros mundos
E das opções que poderia erguer como bandeira

José Gomes Ferreira

Por todo lado escuto música religiosa
Não me perguntam se quero ouvir
Nem mesmo se me incomoda
Os meus gostos não são tidos nem achados
As minhas convicções não são chamadas
Simplesmente ignoram-me
Reajo tranquilamente como quem abraça o mundo
Não significa aceitação e aplauso
Apenas condescendência sobre o outro
Em termos pessoais poderei não dar importância
Em termos gerais estamos a seguir por caminhos alveolares
Estamos a agir à semelhança do que rejeitamos
Não existe qualquer princípio de tolerância sem dar a palavra ao outro
Liberdade não é prestar um serviço e fazer propaganda a crenças
Existe espaço para tudo isso

José Gomes Ferreira

As lágrimas voam no paraíso extraordinário
Voam também as ideias nas almas
E as mensagens dos prodigiosos
Não é glória que buscam
É a harmonia dos hemisférios
O juízo perfeito do cosmos
A precoce invenção
A escolha adiada
O amor que se declarou às estrelas
Os silêncio com as tenazes da razão e do sentimento
Deus, pátria e obediência
As mesmas lágrimas revelam como os cidadãos se comportam
Misturam-se com felicidade
Reflectem a tragédia não assumida

José Gomes Ferreira

O pior da poesia é que leva as pessoas a pensarem que não nos interessa a vida vivida
Que é suficiente a narrativa no silêncio imperturbável
Não pode haver maior engano na interpretação
A poesia não se dá apenas quando o amor é demais
Dá-se igualmente quando o caminho se abre à circulação
Mas também à memória, sentimento e imaginação
É o reafirmar que a liberdade não está para se eternizar e não pode ficar para trás

José Gomes Ferreira

Não adianta a Deus pedir clemência
Se o clima está a mudar
O problema resulta da total inconsciência
E da incúria que afoga os rios no mar

São tantas vidas perdidas
E é tanta a destruição
As comunidades precisam ser ouvidas
É preciso ir para além da oração

Todo mundo se aflige
É preciso antecipar a resposta
Povo que não exige
Chega albaroado à costa

Precisamos de solidariedade
E de mais informação
É necessária toda a sobriedade
E evitar os mesmos erros na reconstrução

José Gomes Ferreira

Depois de todos os interesses
E das perguntas sobre mim
Não quis da vida contar mais histórias
Não que o amor não o faça querer
Solitário deixei-me pelo mundo
Tenho andando livre nessa realidade
Em tempo que nem sempre me é dedicado
Sigo à espera do sorriso de uma mulher
Como estranha madrugada ou loucura
Ainda assim não tenho porque reclame
Se o destino também me aceitou
Preferencialmente até falo de amor
E do que falta para amanhã construir
Sigo se assim me acho feliz
E descubro encanto no mais nobre coração
Tenho orgulho sem validade
Não guardo mágoa ou dor
Sigo para um dia também eu chegar
Não nego o sentimento, não nego o chegar
Não posso é amar sem querer

José Gomes Ferreira

Seguimos o ritmo das exigências
Pressionamos os outros
Não com receio de ficarem para trás
O seu atraso até seria da nossa conveniência
Reduziria a possível competição
O nosso problema são os números
A contribuição para o orçamento geral
Somos solidários até se perceber que nem todos contribuem e se beneficiam
A partir daí passamos a colocar rótulos
E elevar-nos no reivindicar da cidadania
A achar mesmo que somos superiores
Haverá certamente muito erro na preguiça do subsídio
Ainda assim precisamos nos colocar no lugar do outro
Nas opções e emergências presentes
O estereótipo alimenta juízos sedentos mas não resolve os problemas
Também não se pode simplesmente dar sem regras
A dádiva faz parte da ordem da misericórdia
Caminhar sem esforço a contar com o amparo não

José Gomes Ferreira

A rua está quase vazia
Minha mãe não a encontro
Celebro de novo este dia
Caminho pelo bairro do Centro

O Sol brilha intensamente
As famílias procuram flores
Celebro também simbolicamente
A saudade nas suas várias cores

Não esqueço outras mães
Que na vida fazem tudo
Chegam a prescindir dos pães
Para manter os filhos no estudo

Ser mãe não é apenas parir
Tem criação que dela depende
Toda a carência é para ela suprir
Só ela é guerreira, só ela se defende

José Gomes Ferreira

* Em vários países, por exemplo no Brasil e na Alemanha, é hoje que se celebra o Dia da Mãe. No caso brasileiro com a particularidade de ser no plural, Dia das Mães. 

Escrevo no coração e marco as ilusões
Aponto as falhas e os desencontros
Escrevo em papel memória
Como se fosse o caderno da vida
E tudo fosse registado, incluindo as melodias das canções
Escrevo com timbre de voz
Acompanho com o coro da assembleia
Na certeza de que o for dito não será esquecido
E assim se revelam os meandros da paixão
Teve um tempo que lamentei a perda
Remoi todos os pensamentos e ideias
Inventei a culpa e a desculpa
Agora sei que não tenho nenhum balanço a fazer
Se tem desencontros é porque faltam certezas
A vida sempre nos leva a qualquer lado
E os caminhos reabrem-se de novo para seguir
Não preciso formar a culpa, amanhã é outro dia
Não preciso manter as lágrimas, amanhã é outro destino

José Gomes Ferreira

Talvez não lute no sentido da conveniência
E não materialize a escolhe do destino
Talvez necessite de assertividade
E dar mais atenção às articulações
Talvez necessite ser mais pragmático
E iludido por qualquer pretensão
Talvez deva aparentar para dar nas vistas
E erguer outras bandeiras para ter seguidores
Tudo isso é possível e importante não esquecer
Mas ninguém poderá dizer que não lutei
E que não mudei o rumo ao destino
Ninguém poderá dizer que me acomodei às vicissitudes da vida
Tenho seguido com todas as minhas manias e ponderações
A motivação surge da necessidade e do gosto
O brilho surge após alcançar cada meta

José Gomes Ferreira

Abraça-me
Escolhe a luz
Toca-me com carícias
Envolve-me em silêncio
Fixa-me no olhar
Absorve-me olhos nos olhos
Paz na paz
Coração no coração
Espreita comigo a noite
Vai comigo ver as circunstâncias
O dia pleno de escolhas
As ondas do mar a desfazerem-se
O contorno das montanhas a tirar fotografias
Abraça-me e deseja-me
Multiplica comigo as vozes
Vamos juntos desenhar a trajectória
E escrever a história quotidiana
Duplicar a face sem mexer a entidade
Abraça-me sem fingir o esquecimento
Acolhe-me para além do reflexo
Vamos dar certeza aos significados

José Gomes Ferreira

Dei meia volta pelo centro de Campina Grande após a aula das 16h. Até ao encerramento do comércio às 18h as lojas e ruas estavam cheias de gente fora do normal. Usando linguagem brasileira "O centro estava lotado". As lojas mais chiques estavam com promoções de 10 a 30% a propósito da celebração do Dia das Mães, que no país acontece uma semana após a celebração em Portugal e no plural. Faz muito tempo que não via um centro com mais gente de um centro comercial/shopping. Foi um erro o licenciamento sem regra de grandes hipermercados e centros comerciais em Portugal. Acabaram por ter um forte impacto na ocupação do solo urbano, nas políticas de mobilidade, urbanas e outras. Estou a falar de Portugal, mas Natal sofre do mesmo problema, por vezes ungindo o argumento de que são espaços comerciais mais seguros. É a velha questão, condomínios e grandes superfícies comerciais são seguras ou criam bolhas de segurança ao mesmo tempo que estão na origem do abandono de grandes áreas urbanas? O centro de Campina Grande está longe de ser uma área perfeita, mas o seu comércio continua a atrair pessoas. Carece de urgente e ampla recuperação urbana e de intercalar espaços comerciais e residenciais, mas como de se permitir ter espaços com horários fora das 8h-18h, cafés, restaurantes e pequenas lojas de conveniência são bem vindas. A praça da Bandeira à noite tem roulotes de comida. Sabemos que essa oferta é basicamente do chamado fast-food e não atrai um público trazido pelas dinâmicas familiares. Nas franjas do centro existem outros espaços, mas mesmo aí quem comanda são as academias (ginásios). Nestas lojas de Campina Grande tem de tudo e as ruas seguem uma tradição de especialização. A minha rua tem dezenas de lojas de ótica, uma mais adiante tem muitas farmácias de manipulação de medicamentos, a poucos metros uma das ruas principais e outras próximas vendem sobretudo têxteis, roupa e têxteis para o lar. Uma rua mais adiante vende móveis e electrodomésticos, outra tem oficinas e vende todo tipo de produtos para obras e mecânica. Tem lojas e venda literalmente de rua, sobretudo de fruta e espetinhos à noite. Mas também tem outras propostas mais requintadas. Tanto se pode comprar uma camisa por 18 reais como por 450 reais, talvez até acima ou abaixo desses valores, esses são os que observei. Aproveitei para comprar uma camisa alusiva às festas (geralmente xadrez em tons vermelhos ou eventualmente amarelos) e como as pessoas são dadas ao diálogo já estava a conversar com o proprietário com a loja organizada para encerrar mais um dia.

Andarei com o coração em toda a parte
Conto com o amor sereno
Admiro o silêncio como arte
Ainda assim o que imagino é terreno

O que me dói é a partida
E o amor que se esquece
Não desisto da enfrentar a subida
O desdém não me aquece ou arrefece

Não copio o sentimento dos jornais
Nem levo o pecado à letra
Os indiferentes parecem caçar pardais
Os outros viajam de motoreta

José Gomes Ferreira

A chuva cai sedosa
Deixa um formigueiro no ouvido
Escutam-se as gotas no solo
Cai como balas em descampado
Porém balas que em muitos casos são esperança
O momento é sinfónico
O som muda em face da superfície de contacto
O nosso ouvido fino também altera a leitura
A própria manifestação do vento muda a sonoridade
Assim como a intensidade da precipitação
É noite e os pássaros já se recolheram
Também não se escuta ninguém na rua
Essa chuva é também a despedida do dia
A metamorfose da experiência e da melodia
A vontade dos corpos se encontrarem

José Gomes Ferreira

Gosto quando me perguntam
"O que fazes tu para te divertir?"
Pressupõe certamente uma reserva cultural
Sem esquecer momentos para dança, cerveja e confraternização
Acredito que os homens pensem também no futebol
Não creio que se tratem apenas de práticas de lazer
Parece uma definição modular de felicidade
Sou leal na resposta, além de fazer quase tudo isso digo o que faço
Sou feliz a trabalhar, na sala de aula e interacção
Tal como sou feliz a caminhar e viajar
Sou feliz na espiritualidade poética
Na imaginação, na memória e no amor a realizar
Sou feliz no legado herdado e no que possa deixar
Também sou feliz quando sou lembrado, escolhido e abraçado
A minha trajectória deixa-me feliz e não me faz parar

José Gomes Ferreira

Não digas nada
Abraça-me
Sente o amanhecer
Sente a luz cíclica
E o meu coração
Despe o teu ventre
E o subsolo
Não digas nada
Abraça-me
Escuta comigo a paz
Os gritos
A confiança e a verdade
Aceita o silêncio
A força dos homens
O desvario dos magnatas
Não digas nada
Olha à tua volta
Vê como a vida pulsa
E as gerações são infindáveis

José Gomes Ferreira

A cidade é totalmente diurna
Não tem reclames luminosos
Tão pouco lojas abertas à noite
É durante o dia que faz as pazes com o comércio
Usa anúncios sonoros à porta dos estabelecimentos
Vozes masculinas que anunciam os produtos
Uma das vozes canta a promoção do jeans
Tem muitas mulheres com papéis na mão
Anunciam: "Empréstimo! É empréstimo directamente no cartão"
Uma família tenta juntar todo cartão
Uma criança em idade escolar puxa um carro na subida
Hesito em dar uma mãozinha, muitos olhos se iriam concentrar
Em outro ponto dois mendigos discutem por território
No meio de tudo isto os transeuntes passam sem parar
Os únicos que param são os motoristas de moto
Ocupam vários recantos à espera de serem chamados
O semáforo abre e o trânsito prossegue
Aproveito para ver as mostras e escutar as palavras
Em muitos instantes recuo no tempo na execução destas vivências
Vivi outros lugares semelhantes e tudo me parece familiar
Até a sonoridade da linguagem já é comum
Falta apenas o instante do café ao balcão com o ruído da máquina

José Gomes Ferreira