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Pior que o futebol e a flatulência de carácter
A política e a religião vão desfazer laços
Vão fechar portas e erguer barricadas
Outrora eram fóruns de debate e comunidades de crentes
Agora são o espectro dos contrários
As cores de quem se opõe aos nossos pensamentos
Não sei como viemos parar aqui
E como esquecemos a fraternidade e a tolerância
A educação apenas escolheu melhor os profetas
Parece não ter efeito sobre a normalidade
Da resignação estamos a passar à brutalidade das convenções
E às certezas de uma minoria
Sem nenhum de nós participar da construção do argumento
José Gomes Ferreira
O problema não é o louco ter certezas sobre o mundo
Será sempre sobre o seu mundo sem a pressa da felicidade
O problema é o justo deixar de ser ouvido
Mesmo que na sua medida tenha uma leitura cabal das soluções
Quando a propaganda se sobrepõe o que conta não é o conteúdo e a escolha do argumento
É a metamorfose dos alicerces quando substituída por pigmentos
É a voz a falar mais alto a confundir-se com a razão
E o dogma a ganhar terreno à revisão crítica das discussões
Se a fala é absoluta resta aos pregadores educarem as multidões
Tudo mais é obediência à indefinição suprema
José Gomes Ferreira
Tenho um beijo guardado na gaveta
E mais dois no coração
Amor não me julgues pela caderneta
Pois sou também bom cidadão
Tenho alma de gente pura
E muito boa educação
Amor não me procures pela fartura
Eu não correspondo à tradição
Tenho muito amor para dar
E uma vida para construir
Amor não me digas como devo andar
O que importa é se me vou distinguir
Tenho em mim toda a esperança
Mesmo sem a fé dos ancestrais
Amor vamos agir com segurança
E explorar os nossos dons naturais
José Gomes Ferreira
Junto as recordações ao meu corpo
Rebolo e indago a satisfação
O que posso fazer para capturar o teu sorriso
E adormecer enquanto entoas a verdade
O que posso mostrar para brilhar tanto
E ao mesmo tempo venerar o universo
Amo o teu sonho
Mesmo não completando o meu
Mesmo que permaneça fora do meu alcance
O que poderei fazer para articular as utopias
E mostrar que outro mundo é possível
Amo o teu exemplo
Mesmo que nos limite na aceitação
E deixe ao perdão a escolha da fé
José Gomes Ferreira
Eram cruzes e marcos
Amores proibidos
Heranças não concretizadas
Negócios falhados
Maus olhados ou invejas
Algum empréstimo não pago
A terra por desocupar e devolver
Tudo havia para as pessoas não se falarem
Eram bloqueadas da rede real
Assim andavam anos e décadas
Na rua cruzavam-se no desvio para cada lado
Não adianta romantizar, nem criar imaginários
Esse tipo de divergência não partia para a luta
Era dor forte a dilacerar o orgulho
José Gomes Ferreira
Escuto ainda o contacto com o granito
Sou da geração do ferro e da madeira
Os meus antepassados usavam tamancos
Feitos em base de madeira dura que fazia eco na calçada
Outros andavam ainda descalços, o seu silêncio era escutado no sopro do vento
Já as rodas das carroças e dos carrinhos de mão eram de ferro cru
Acordavam os bebês e os fantasmas
Como que trituravam as areias na fricção
E deixavam o peito aflito com qualquer desnível
Quase imitavam o toque do sino da Igreja
Por vezes o aro de madeira acabava desfeito
No caminhar a pé ou no movimento das carroças era possível adivinhar quem vinha
No lançar de cada pé e no ajeitar do peso do corpo
Na carga e construção do veículo, adivinham-se os transeuntes ao longe
José Gomes Ferreira
Tiro dos lábios o sal e solto a tua língua
Beijar é como iodo em coração ferido
Oxigénio na dose certa e medida
Tiro do olhar a inquietação
E só te vejo a ti no contato germinal
Aceleramos a fricção para que as horas se repitam
Pode ser amor, mas primeiro é o sabor da saliva
A entrega sublime ao corpo em suspensão
José Gomes Ferreira
Minha mãe quero roupa nova
Que o Natal está a chegar
Esqueça também a tal sova
Eu quero é roupa nova para estrear
Compre também outros presentes
Quero me apresentar à maneira
Irei rever alguns dos ausentes
Será bom voltar a estar junto à fogueira
Não esqueça de um par de meias
Para cumprir a tradição
Acenda também as candeias
Para não haver contestação
Lembre-se das rabanadas e sonhos
E de todas as simbioses
Apesar dos meus bons aninhos
Adoro o bacalhau e as filhoses
José Gomes Ferreira
As armas disparam em contínuo
O medo escorre dos olhos
Que enfiados no rosto mostram o pavor
Chuparam as lágrimas como alimento
Nada mais lhe resta que a morte
As armas disparam ódio
E o sangue cospe terra
Não se escutam preces
Nem o choro das crianças
Os corpos mexem-se já cadáveres
Não tem vida onde se invadem nações
Triste o sonho dos que tarde despertam
Não têm tempo de ver os jardins
E a luz dos dias de paz
Triste futuro daqueles que sucumbem sem culpa formada
José Gomes Ferreira
Se escolhes a beleza, eu escolho a atenção
Se escolhes a exuberância, eu escolho a simplicidade
Se escolhes o espalhafate, eu escolho o silêncio
Se escolhes a representação, eu escolho a coerência
Se escolhes visibilidade, eu escolho a paixão
José Gomes Ferreira
O sangue que corre nas veias é precedente, mas não é normativo
Os genes marcam o jeito, quem marca a face é o processo educativo
Toda a aprendizagem do berço ao prato
A definição das escolhas antes da idade adulta
E a capacidade de aceitar sem apresentar alternativas
A escola ensina as letras, a família define os padrões
Lá em casa sempre existiram muitas restrições
Como na maioria das famílias rurais daquele tempo
Não faltou comida e orientação para trabalhar
Qualquer desvio poderia ser resolvido com uma vara de marmeleiro
Nunca dei razão para grandes punições
Não deixava era de mostrar o meu ponto de vista
Na verdade os genes marcam mais a idade adulta que o crescimento
Na idade adulta sobressaem todas as doenças herdadas
José Gomes Ferreira
É tudo um faz de conta
Uma imitação do que pode ser
Suposição de ponta a ponta
Maneiras de nos deixar adormecer
Valem-se de boas narrativas
Na imensidão do sentimento
Escondem as alternativas
Tiram o pão do alimento
Convencem profetas e plebeus
Que a salvação está no voto
Desmancham o argumento dos ateus
Veneram bandido devoto
Levam para a guerra os seus deuses
Como armas absolutas
Lançam sem piedade os obuses
Acham que a destruição vence lutas
José Gomes Ferreira
Vivi os primeiros anos numa casa grande
Tão velha que tinha áreas proibidas
Tinha varandas de madeira com tábuas em falta
Não possuía casa de banho ou água canalizada
O piso inferior tinha diversos currais e uma área ampla
Nela havia um pátio enorme, meio estrumeira, meio arrumação
O piso superior tinha muitas divisões
O anexo de uma sala era interdito
Não havia qualquer segredo a desvendar, apenas risco de queda
O quarto e a sala principal davam para o largo da aldeia
As janelas eram verticais com parapeitos altos
Daí se observava o movimento dos sonhos
Os enormes portões escondiam qualquer lamento
Era um universo que na penumbra gerava vida
Muito cedo tudo se esvaziou com a emigração dos meus pais
Passou a ser um local para guardar ferramentas e criar animais
A aquisição nunca se tornou possível
Anos volvidos sobram as ruínas de um negócio desfeito
E as lembranças dos instantes lá passados
José Gomes Ferreira
Comigo a Lua solteira nunca deixou de amar
Não largou a sedução e a escolha da noite escura
Comigo a maresia nunca deixou de encantar
Não deixou de cativar amantes e solidários
Comigo os olhos coloridos não deixaram de brilhar
Não abandonaram o sorriso e o sentir do coração
Comigo a bondade nunca fugiu à memória
Não deixou de reservar um cantinho na história da vida
Comigo a boca não deixou de beijar
Não encontrou foi a ternura da reciprocidade
José Gomes Ferreira
Já cai inanimado de amores
E fui rastreado por centenas de mirones
O nosso fracasso aguça a atenção da multidão
Parece feliz com o escrutínio da incompatibilidade
A maioria nunca vai entender
Acomodou-se ao conforto da primeira paixão
Lamenta-se depois da escolha de um único amor
O carinho fortalece os que receiam cair abandonados
As relações não são necessariamente baseadas em amor
São marcadas pelo gosto e estética de convivência
O amor é para os sóbrios da vida
Aqueles que sempre questionam a função do coração
E os lapsos de sabedoria na convergência da união
José Gomes Ferreira
Os dias de esquecimento selectivo
E a guerra à porta ou nas traseiras
Mesmo sem sangue à correr
Mas com lixo amontoado no descampado
Carros em competição pelo asfalto
Mercenários nos escritórios
E egos na disputa de futura reforma
Pode não ser sangue, é suor e tutano
As vísceras da própria liberdade
E esse esquecimento pelo distante que não parece ser nosso
Como se o valor da vida fosse o valor dos laços familiares
Assim como da simpatia política e religiosa
Estranho caminho o da Humanidade
Mata para ocupar, ocupa para reconstruir e refazer as disputas
Para que servem os credos e as alianças
Da noite para dia festas são metralhadas, hospitais são arrasados com gente
José Gomes Ferreira
Achei os dogmas
E as risadas no monte
Não julguei ou fiz piada
Nem olhei de lado
Pergunto é pelo rumo
Como chegámos aqui
Para que serviu a educação
E o amor da cepa ao crescimento
Achei o engodo
E a mistura de engano
A margarina também nos ilude
E o pó de talco nas virilha
Andam a usar muito fermento
E a julgar a vida fácil
Não dá nem para entender
Quem abdica das escolhas
Achei o fim
E o limite da civilização
Não se adoçam palavras
E não se celebram os instantes
É tudo por ordem e influência
No estalar dos dedos
E o sucesso é o caminho
O pior é a frustração
A conclusão de que foi errado
E a refeição pronta não se compara às ideias
José Gomes Ferreira
Da maturidade ao envelhecimento a memória aumenta
Apesar do risco de algumas doenças ocultarem quem somos
O envelhecimento corresponde ao limiar da experiência
E ao instante do sublimar da narrativa sobre o já vivido
Por sua vez alimentada com a nostalgia da saudade
Precisamos viver, observar e sentir para gerar uma história
A memória reproduz e alarga o já percorrido
Não tem memória sem imaginação e sem laços
A melhor forma de lhe dar voz é reproduzir essas vivências
A amizade, a escuta e a troca de palavras são incitadores de memória
São o aparelho reprodutor e relator de acontecimentos e padrões de vida
José Gomes Ferreira
Portugal está de pantanas
Tal a bandalheira
Que até ardem as pestanas
E nos afecta a caganeira
O Galamba meteu as mãos no hidrogénio
E quis lucrar também com o lítio
O gajo pensa que é um génio
Mas tem o ego fora de sítio
Com isto o Costa aproveitou
Demitiu-se de imediato
Nem sequer pestanejou
Acabou com o mandato
Quem se lixa é o Zé Povinho
Farto de tantos artolas
Paga caro o que é novinho
E sobrevive a pedir esmolas
É incrível a oposição
Ao bufar por todos os lados
Mostra que só tem tesão
A imitar voz dos calados
No meio de tudo isto
Falta quem nos acuda
O António Silva chamava o Evaristo
Os portugueses gritam por ajuda
José Gomes Ferreira
Já hoje é quarta-feira
E ainda não vi o mar
Quando está à minha beira
O coração reaprende a amar
Tão rápido a semana avança
Na sua rotina destemida
Que se confunde trabalho com esperança
E felicidade com corrida
Prometemos um dia abrandar
E viver a vida um pouco
É certo que precisamos trabalhar
Só que ninguém gosta de ficar louco
José Gomes Ferreira
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