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Se deixas o corpo em saliência
Esta noite estarei contigo à janela
Escutarei contigo as canções
Acompanho-te no céu estrelado
No imaginário dos transeuntes
E no espectáculo do cosmos sobre a realidade
Sonho com o tempo deixado
Sem o teu carinho transformou-se em superação
Sem o amor cara a cara e os lábios escondidos
Mas se volto a contemplar-te jamais terei perdão
Não é o teu amor que imploro
À minha alma não lhe falta tentação
Não tem qualquer bondade na despedida
A felicidade não vive apenas de recordações
Fragrâncias e promessas falsas
Em consolo para afagar mágoas
O meu coração é vizinho do destino
Não pode entregar-se à corrida das palavras
José Gomes Ferreira
São 04:44 e o dia já clareia. Sopra uma brisa leve de sábado, que quebra por vezes o silêncio e o primeiro chilrear dos pássaros. A temperatura aquece o corpo ainda sem transpirar. Tento fechar os olhos uma vez mais. A semana correu de ribanceira. É necessário recuperar a luz e a paz de espírito, assim como o desgaste das articulações e das horas.
É o instante para captar sons e fissuras das palavras, ainda sem passos na rua e sem a pressa de partir. O mundo está um reboliço e não dá mostras de seguir outras escolhas. Falam em Deus e amor, mas essa mensagem não é levada a sério. É proclamada após destruição e morte. Usam-na como argumento para a reconciliação, quando o ressentimento e a sede de vingança fala mais alto. O dia compõe-se com a chegada do Sol. Espreito pela janela, observo com a imaginação o retomar do ciclo diário da natureza.
Aumentam em minutos os sons, sinais de vida em várias posições e de vários seres. A luz intensifica a expectativa da alma. A saudade mantém o pisca-pisca dos lugares e pessoas. Viajo sem me mexer e reposiciono-me. Tudo em segundos, como abraço de laços apertados e abrangentes. Permaneço em transe posicional a absorver o alvorecer. Não necessito de beliscões ou de contar histórias. A ternura da manhã é como um primeiro amor que se renova. Sempre na frescura lúcida dos mistérios a desvendar e com o coração entregue aos sentidos. Falta-lhe ainda o desejo e o olhar. A captura da carne pelos olhos cintilantes, cruzados nos acasos ou nas repetições.
São agora 05:05. O marcar das horas vem cheio de movimento. Tem tanta beleza nestes instantes como no parto materno. Ficará o cordão umbilical ligado à delicadeza das imagens introspectivas. A glória está em não perder a sensibilidade das considerações na percepção do que nos rodeia. O dia segue e espera-me. Vou acompanhá-lo nessa jornada.
Parece que chega gente
As ramas secas
O enrolar dos ouriços
As toupeiras no quintal
O ninho dos pardais
O passar dos anos
Os cabelos brancos
As palavras luzidias
Os rituais de escolha
O jogo de matraquilhos
Muita pobre alma
De pobre escolha
É tanta a ilusão
Pedem calma
Não digo nada
Se a conversa é guerra
Andam as palavras cheias
E o coração inquieto
À procura de um valor
Num mundo que não muda
Figuras contemplativas
Outras tristes
Vizinhos que não se falam
Nações que se atacam
Bares repletos
Festejam o álcool
E o suicídio do desejo
Na ilusão emocionada
A fingir um ser pensador
José Gomes Ferreira
O bairro respira ainda quase silencioso
O Sol alto das primeiras da manhã não cala os pássaros
Hoje não tem ninguém em diálogo na sombra do prédio
Escutam-se conversas de fundo
Tem gente à espera de ser atendida no posto de saúde
Ainda não se escutou nenhum pregão a anunciar qualquer venda
O bairro perdeu alguns vendedores madrugadores
Latem os cães na passagem da carroça
Todos os dias é um vai e vem com resíduos e outras cargas
Com o ganha pão que os fretes propiciam
Passa um carro ou outro a revolver a gravilha
Também se escutam os vizinhos na preparação do café da manhã
Aparece suave e cheio de brilho o novo dia
Que se encha de encanto o nosso coração pelo que será vivido
José Gomes Ferreira
O amor nem sempre tira a insónia às relações
Chego a perguntar-me se o amor é celibatário
Os padres dizem amar Deus e vivem em aparente celibato
O amor como paixão é imaginado, por conseguinte é celibatário
Os solteiros são formalmente celibatários
O sonho de uma vida masculina para agradar ao povo é celibatário
José Gomes Ferreira
Já me mostrei de cara nua com as lágrimas caídas
Vencido pelo destino ou pela perda
A repercutir toda a emoção e a escamar a reacção dos sentidos
A lembrar que tombamos na travessia
E o encanto é para celebrar essa memória
Já me mostrei sem a lactose das miragens
Frágil como quem ama e o coração não sabe o que quer
Feliz pelas mãos apertadas e pelas convicções
À espera que a felicidade seja rumo e comunhão
Já me mostrei fraco e potente
Até um electrocardiograma oscila com a ansiedade
Tal como oscila de ansiedade a alma sem residência fixa
Já me mostrei de lenço branco e sujeito a perdão
Sem o julgamento das categorias dos tribunais populares
Sem a vaidade que as ruas cumprem no sono da complacência
José Gomes Ferreira
Vejo inocentes livres aos beijos
E moralistas incrédulos em meditação
As pessoas sempre saíram à rua para ver os noivos
Mas de imediato cada uma seguia a sua vida
Subitamente manifestam opiniões condicionais
Querem apenas conhecer e desdenhar
Nao se importam com a vida alheia
Querem saber o sexo dos anjos
Preferem o perfume da expiação ao aroma das rosas
A proclamação da fé dos homens não está nos deuses
Anda a ser levada para fora dos templos
Culpam o capitalismo e o progresso
Quando é a soberba que gera disputas
E o vazio que motiva palavras de ordem
José Gomes Ferreira
As flores da liberdade chamam por mim
Fecho os olhos para fotografar o tempo
Quero contemplar os caminhos de Outono
A erva esverdeada a serpentear as ondas secas
As ovelhas a correrem pelo tapete plano
Os bugalhos a abanar como enfeites nos carvalhos
O castanho das folhas caídas empurrado pelo vento
Fecho os olhos para viajar entre essas imagens
E na celebração do charme da natureza
Tem ainda videiras com folhas penduradas
Gosto das manchas amarelas a pintar a paisagem
Se um dia fugir com o meu amor quero que seja uma fuga outonal
E que as videiras nos vistam com luxúria e despedida
Nada existe de mais belo que o amor humilde da contemplação
José Gomes Ferreira
Cresci com mulheres que criaram os netos
Também fui neto e ajudei essas avós
Eram mulheres de fibra e presença marcante
Viúvas desde cedo não desistiram de viver e ajudar
Guardavam na perda o seu voto de castidade
E respeito no amor eterno ao defunto
Eram mulheres de lenço e xaile preto
Possuiam um coração capaz de abraçar o mundo
Sempre as conheci como velhas, mas tinham menos idade que a minha hoje
Contava sobretudo a hierarquia hereditária
A liderança na família fazia aumentar o respeito
Viam filhos e filhas partirem, pelo que no cuidado continuavam na definição de família
José Gomes Ferreira
Nunca sonhei ser professor
Essa foi uma concretização que segui já adulto
Na verdade não sonhava frequentar a Universidade
Sonhava voar como as crianças
Esmorrei algumas vezes os joelhos lançado em declive
Imaginava muitas histórias, não necessariamente sobre o meu caminho
Imaginava personagens, geralmente era narrador
Não eram sonhos diretos, eram realidades possíveis
Quase sempre histórias de felicidade e superação
Na época não escrevi nenhuma dessas histórias
Andava com elas vários dias no pensamento
Eram o engodo para escapar à solidão
E esquecer qualquer crise de orfandade
Eram episódios que contava a mim no mesmo meio do milho ou da mata
José Gomes Ferreira
Um pouco dormente o pensamento
A inútil frescura da moral
A política que não vale nada
Andam a jorrar sangue na estrada
Como se fosse alimento para cães
Assim vai a vida humana
Sem valor ou argumento
Um pouco de tudo num mundo de nada
É imbecil a competição e a vitória
Escolhem rosas e cravos
Fingem sedução e liberdade
Mas as mãos continuam atadas
Nas mentes que apenas consomem
E declaram estar na sua razão
José Gomes Ferreira
Corro tanto que deixo o corpo a latejar
Como capim fustigado pelo vento
E calcado pelas corridas das raposas
Deixo tudo em transe oblíquo
A lembrar jangadas sem saber que voltam
Em que à espera ficam famílias a aguardar o peixe
Também eu luto pela incerteza do destino
Mesmo que a praia repouse na minha ausência
É do coração que preciso cuidar
Reage melancólico às baladas
Gosta da certeza dos acontecimentos
Andará também cansado dos azedumes e da distância
E dos laços nem sempre fiéis à genealogia
Repouso como água fresca sobre as nascentes
Cada instante é um novo ponto de partida até à foz
Seguirei na transparência e escolha de raízes
Sempre que parto refaço memórias e inspiro ideias
Gostava de ontem ter cuidado do meu quintal
Só não posso abraçar o céu e a terra e a curiosidade
José Gomes Ferreira
Não importa onde estamos
É o que ocupa o coração
Que acompanha todos os minutos
E nos interpreta por dentro
E se perguntamos porquê
Na volta que escolhemos
Ficamos sem palavras
A prender o sentimento
Mesmo que seja inutilmente
Tem em toda a viagem
Passos sobre a memória
E hesitações sobre o sonho e o amor
José Gomes Ferreira
Andamos formatados
Seguimos palavras de ordem
Ideias banais
Receitas de felicidade e sucesso
Pouco importa a originalidade
E o gozo genuíno das faculdades
A Maria vai com as outras
O Zé não quer ir com os outros
Vivemos como que sonâmbulos
Com prisão de mente
Talvez um vinho faça bem
Quem sabe a verdade das coisas
O suor e as lágrimas dos destinatários
A saudade no sonho que se alcança
José Gomes Ferreira
Ser professor não é apenas ganhar o pão
Nem interpretar a prosa e o verso
É desvendar a rota que traça no chão
Para explicar os planos do universo
Tem muito professor por paixão
E quem procure conhecer a natureza
E quando alguém se arma em sabixão
O professor ensina que o método vem antes da certeza
Ser professor não é só abrir caminho
É ensinar como se escuta
Também não é mostrar o desalinho
Ensinar não se confunde com recruta
A obediência deixa para os pais
O papel do professor é a educação
Perante ele os alunos são todos iguais
O seu dom é prestigiar a formação
José Gomes Ferreira
Deixei passar as gaivotas e o anúncio para acostar
Nunca fui de viajar na proa e saltar primeiro
Gosto de ver o rasgar das água no navegar
E determinar dos mapas a posição
Só que também me satisfaço com o encanto da brisa
E com o silêncio oscilante em pensamentos distantes
Prometi respeito às categorias e aos padrões
Mas mesmo aí tenho seguido ao sabor das águas
Não que siga à deriva e sem planos
Vou para onde melhor sinto bater o coração
Penso em ti muitas vezes em consciência
Sobretudo na ausência que te desconheço
A solidão será mais vazio da alma que qualquer anúncio por relações
Gosto da cortesia do vácuo efêmero
E de partilhar a madrugada com os primeiros raios de Sol
Não que não sinta a tua falta e não coteje os altares
Os teus beijos trazem a certeza da devoção firme
E o registo das carícias que a história gosta de simplificar
Ainda assim sinto-me seguro a rasgar a imaginação
A caminhar sobre pedras que conheçam os meus pés
José Gomes Ferreira
Não existe glória na guerra
Os soldados são mortos ou feridos
Choram na rejeição e medo
Os heróis morrem
São lembrados nas cinzas
Na fantasia do regresso salvador
Os inocentes são esquecidos
Chamam-lhe fatalidades
São sempre o alvo perdedor
A guerra também não tem vencedores
Apenas sobreviventes e massacrados
A guerra é apenas destruição e vidas perdidas
José Gomes Ferreira
Até a Lua abraça o Sol
Na ternura que cativa
Até o rio abraça o mar
Na glória de chegar
Até a noite se funde no dia
E o dia se entrega à escuridão
Até a experiência diáloga com o saber
E a magia precisa de espectadores
Até nós cativamos a harmonia
E as preces abraçam as causas
Até a razão se enche de graça
E o sentimento caminha junto
José Gomes Ferreira
Com tanto encanto andam
Os gajos a criticar a vida alheia
Debocham e tresandam
Ao atravessarem a aldeia
Cuidem dos filhos
Não esqueçam os pais
Não se metam em sarilhos
Cuidem também dos animais
Tem felicidade em todo lado
O amor próprio deve ser prioridade
Se cada não sabe ficar calado
É melhor não criticar a diversidade
José Gomes Ferreira
Arregaço as mangas como as palavras
Procuro a tua boca nos meus beijos
Sigo a luz que expõe o sentimento
Se a timidez atrapalha peço ao Sol para que se esconda
A esperança é que nesse instante abras o coração
E cruzes o teu destino com a minha imaginação
José Gomes Ferreira
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