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Coloco os discos em modo repetição
Não que rode apenas os decibéis sem uma escolha deliberada de canções
Não quero sentir a inquietação da paragem
Olho o espelho e só no olhar já mudo
O coração também terá mudado com a terra
E com o relampejar escondido nas cortinas
É mais do que desejo todo trajecto
Tem um rio que se avizinha e me desconhece
Andam peixes livres a celebrar a natureza
Correm como eu, na pressa do que pode melhorar
Troco a saudade pela imaginação
O amor que penso perdeu as insígnias
Não vive mais das utopias e promessas
São os sorrisos que quando se cruzam acrescentam luz
Tal como as corujas subtis no aparato das tocas
E na liberdade oculta dos verdejantes cajus
Deixo a noite escolher se me quer em êxtase ou tranquilo
No remexer das horas que se arrastam
Ou na felicidade de alcançar a paz das estrelas
José Gomes Ferreira
É tempo das castanhas, da jeropiga e água-pé
Tradições que fumegam na rua e vendem-se enroladas em pregão
São quentes e boas, anunciam as mulheres
A geada dos dias não está para carnavais
Nada melhor que enfrentar a invernia ibérica preparado
Vou guardar os figos secos e a aguardente
Vão chegar certamente visitas nessa travessia
Já serviram na tristeza dos velórios
E no mata-bicho dos mais ousados
Aqueles e aquelas que diziam enjoar com leite e pão pela manhã
E depois penduravam no hálito o pecado
José Gomes Ferreira
Nasci numa casa de pedra e paredes pintadas de cal
Tinha uma cama partilhada com o meu irmão
Também dormi sobre arcas de milho e alguns alqueires de feijão
No meu baptizado colocaram electricidade
Mas cheguei a usar a luz da candeia a petróleo
O que tinha de mais moderno na casa era uma bacia de alumínio
Com ela lavava as mãos e a cara, tomava banho de balde
Havia um rádio que nos ligava ao mundo
Escutava a Ginástica matinal do Dr. Marques Pereira
Uma década depois chegou um frigorífico e mais tarde uma televisão
Tremi como varas verdes no frio de inverno, aqueci os pés à lareira
Em Dezembro o porco pendurado ocupava espaço
Depois ia para a salgadeira e para enchidos
O aroma que mais gostava era do azeite acabado de fazer
À entrada da casa havia um tapete de mato, que curtido virava estrumeira
Existe ainda uma jardineira na parede, manteve-se território de uma sardinheira
Chegaria a reconstrução do edifício, com mais um piso e cimento na entrada
Depois veio um pequeno tanque para armazenar água
Só mais tarde teve casa de banho e chegou água canalizada
José Gomes Ferreira
O vento sopra de suspiro
Retirando o pó aos enxovais
É bem capaz de polir os conceitos
E fazer aluir muitos padrões
Arrasta as folhas secas na calçada
É também capaz de mover ideias
E juntar multidões em acção
Tem também vida no espectro de cores
E na leitura do feixe de luz
Esta última corre toda a história
Medida sobre a imensidão das paisagens
Abraça a várzea escolhida para prosperar
Contorna as montanhas de onde brotam as águas
Acompanha os crentes na ida à missa
Não falta a audição dos elementos
Escutam-se vozes sobrepostas
Homens e mulheres que dialogam fora do radar
O chilrear cativo com diversas sonoridades
A orquestração quotidiana do sublime
Muitos suspiros alcançam o céu e o futuro
Algumas interrupções mecânicas do silêncio
Com o trânsito tímido que circula pela manhã
José Gomes Ferreira
O comboio parte às nove
E leva-me para onde quiser
A locomotiva é que o move
Corro para os braços de uma mulher
No horário não é pontual
Posso até me atrasar
Em outros momentos não tem mal
Hoje acho que já está a abusar
Finalmente o comboio chega
Sento-me com vista pela janela
Corre tanto que até fumega
Lembra a vida a ferver dentro de uma panela
Segue no trilho dos carris
Apita para assinalar a presença
Este não vai para Paris
Também quero ir de Lisboa a Valência
José Gomes Ferreira
Repouso sem mágoa na lembrança dos teus cabelos
E no aplauso do movimento das marés
Escolho as imagens e os segredos
Admiro-te quando me contemplo
Apenas no que sei exactamente de cada falha
E de cada oportunidade perdida
É tão leviano o amor que nos faz correr
É tão descuidado que acredita ser verdade o que é crença
Tem água pura a correr na ribeira
E sentimentos expostos à janela
Um dia preecheremos todo esse colorido
Como alegria por cada reencontro
E no purificar da narrativa
No escrever da história haverá maior felicidade
Embora o que foi passado já não exista
Mas o que fazer para sorrir ao vento
E abraçar a realidade
Quando a ilusão se for embora partimos também
José Gomes Ferreira
De água e sal sou composto
Pouco importa a literatura
Incluo um pouco de mosto
Completo com laços de ternura
Adiciono o Sol e o vento
E a coragem de chegar
Junto paixão ao pensamento
E vontade de sempre amar
Não esqueço a memória
E o que chamam educação
Construo a minha história
Reforço-a com dedicação
José Gomes Ferreira
De vida às costas em cais repleto
O imigrante tenta a sua sorte
Segue sempre inquieto e comprimido
Com a saudade a mover o coração
Não é um mero transeunte na passagem da vida
É um construtor de novas rotas a desafiar o destino
Sorri quando o céu se abre e o abraça
Não dorme quando as dificuldades o atormentam
É orgulhoso e penitente na acção
Sonha sempre com o regresso
Acolhe a ideia como desígnio a concretizar
Erra e levanta-se, vence e é criticado
Tem dificuldades em ser reconhecido na pertença
Ao partir poderá ser esquecido nas opções
Ao chegar será sempre estrangeiro nos lugares
José Gomes Ferreira
Em todos os meus anseios
E limites para o descaminho
Pergunto-me tantas vezes
Também devo chorar quando te espero
Deixo passar a tempestade e depois acordo
Ou devo apenas resignar na graça dos dogmas
Haverá sempre privações e expectativas
Não adianta castigar-me e fingir
Não me julgo nos acontecimentos
Em todas as minhas derivas
E interpretações sobre as causas
Não encontro respostas convincentes
Procuro encher o peito de ar
Elevo a cabeça ao tom do vento
Em todas as incertezas
Resta manter firme o olhar no céu
A esperança e as convicções
O destino e o acaso nem sempre se gramam
É a luta que abre os principais caminhos
José Gomes Ferreira
O vento bate nas palavras
Dificultando a audição
Bate o vento e o Sol
Ambos de rajada
Chegam no pico das horas
Balançam as interrogações
Há suspeita de fogo posto
Referências interditas
Riscos de traço azul
Censura por incompreensão
Mas também vazios
Frases repetidas
Slogans de propaganda
Rostos a lembrar discursos
Utopias rasgadas na calçada
Grafitis de gente esquecida
Sombras pasmadas com a divisão
José Gomes Ferreira
Não me seduzas com o que não és
Com a repercussão da imitação
A franja artificial que escolheste para o vento
O nome que dás às noites que não estás
Seduz-me com a pressa
Com o olhar escarlate
E o coração a pulsar
Seduz-me com a voz
Com rasgos de loucura
Impulsos para te querer
Seduz-me com honestidade
Não me seduzas por interesse
Seduz-me com um sopro ao ouvido
E o repetir dos anos no parapeito
José Gomes Ferreira
Um novo passo e o céu se aproxima
Como melodia que atravessa oceanos
E chega aos ouvidos como água fresca
Uma nova crença e todos se benzem
Acreditam na alfarroba e no tempo
Mesmo nas escolhas perdidas
Um novo sonho e o amor está na lista
Porém faltam os dotes à humanidade
Soltem os vampiros e os mosquitos
Pouca importa a consciência de classe
O planeta desmorona-se para todos
Depois dos vulneráveis vão os protegidos
José Gomes Ferreira
A solidão atrapalha
No momento de fazer as contas
Uns vão jogar à malha
Os outros têm respostas prontas
A solidão conforta
E deixa muita gente esquecida
Tem quem não abra mais a porta
E quem dê a fé por perdida
A solidão fortifica
Só não é para todas as horas
Pois se para uns purifica
A outros não se vê melhoras
José Gomes Ferreira
Não sei quem és, mas fazes-me falta
E dos dias silêncio, só para te ver
Nas noites claras, sem te esperar
Dos pensamentos, sem te querer
Da imaginação, para te abraçar
Do sonho, os caminhos cruzados
José Gomes Ferreira
* Teve um período no qual usava muito essa frase: Não sei quem és, mas fazes-me falta. Escrevi certamente sobre o tema.
Quando nasci tínhamos uma burra
Era a Carriça, como todas as Carriças
Chamar-lhe burra era ofensivo
Carriça era um nome de afecto
Todas as burras da aldeia eram Carriças
Existia mesmo a Ladeira da Carriça
A subida breve e vertiginosa
Todas as Carriças derrapavam nela
Carriça era quase nome de gente
Não como Carriço que é sobrenome
Era o chamar de pertença ao núcleo familiar
Na época não havia tractores agrícolas
Foram aparecendo até se generalizarem
Quem tinha mais posses poderia ter uma junta de bois
Eram as burras e burros que ajudavam a lavrar a terra e a carregar mato e lenha
As burras eram as escolhidas por serem mais dóceis
Levavam uma vida dura junto dos humanos
À luz daquele tempo eram bem tratadas e cuidadas
José Gomes Ferreira
As minhas palavras são de revolta
O mundo assiste à perda de vidas
Tanta destruição, chantagem e morte
E parece que para nós é tão pouco
Tudo se resolve mandando dizer umas missas
No máximo com a compra de flores e velas
Quando não com elogios rasgados ao agressor
A política e a religião passaram de dogmas a tormenta
Enquanto persistir ódio e ganância vão servir de argumento para tudo
José Gomes Ferreira
Porque tanto rogam a Deus
Para escapar ao entendimento
Porque se dizem ateus
Se mantêm a mesma linha de pensamento
Porque apenas rogam
Na hora de aflição
Porque não advogam
E procuram explicação
As crenças são poemas
Escritos pela comunidade
São juízos sobre todos os temas
No interesse do que é verdade
Os rituais são pertenças
Para que se mantenham as tradições
Não oferecem sentenças
Na história das civilizações
José Gomes Ferreira
Em breve não haverá mais esperança
A batalha climática está perdida
Restará cuidar dos sobreviventes
Enterrar os mortos e recomeçar
A guerra e a política marcam o destino final
Aliados à sede de consumo e de pódio
Não adianta aplicar cuidados paliativos
Serão sempre menores que a progressão da tragédia
E insuficientes para fazer face aos descalabros
Não tem distopias de salvação e engenho humano
A gula e o ódio sobrepõem-se ao interesse comum
Não faltou informação, não faltaram alertas
Faltaram prioridades, fraternidade e sentido de civilização
José Gomes Ferreira
As ruas da minha aldeia
Têm muitas alminhas
Só para a gente não perder a ideia
Lembram as nossas avozinhas
As ruas da minha aldeia
Têm muitas fontes
Nenhuma pessoa pode ficar alheia
À agua pura dos montes
Tem muitas ruas da minha aldeia
Com nomes de mulheres
Nenhuma tem nome de candeia
Ambas iluminaram os nossos saberes
As ruas da minha aldeia são de granito
Com casas com a medida certa
O povo não só é muito expedito
Como nos convida à descoberta
José Gomes Ferreira
O Outono era poderoso e colorido
Revolvia os lameiros com chuva impiedosa
Deixava lodo nos terrenos de cultivo
Limpava as ruas e ribanceiras
Criava levadas com água a correr do planalto
Que formavam pequenos ribeiros temporários que se juntavam a outros maiores
Os socalcos das encostas recebiam centeio ou cevada
Outras colheitas de sequeiro eram adequadas aos solos
A terra remexida tinha aroma a pureza
Ainda sem o gelo dos meses seguintes
A maioria do restolho transformava-se em atoleiro
A azeitona permanecia sem pressa nas oliveiras
Era apanhada a que caía no chão, não se poderia pisar ou estragar
O tempo era também de colher os últimos restos de fruta
Os últimos rabiscos de uvas, os figos restantes
Os dióspiros pintavam de cor os quintais e adoçavam a boca
Apanhavam-se também os últimos marmelos e as castanhas
José Gomes Ferreira
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