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Ainda me pergunto se sou também deste
Haverá alguém deste tempo?
Talvez somente a idade não clarifique as gerações
Sou do tempo de andar à boleia e trabalhar no campo
Sou do tempo de percorrer vários quilómetros para ir a uma procissão
Sou do tempo em que se iam buscar livros à biblioteca
Sou do tempo das botas de couro tratadas com sebo natural
Sou de outros tempos e de muitos
Em mais de cinco décadas muita coisa mudou
Nunca vi tanta indiferença e competição
José Gomes Ferreira
Onde estavas quando por ti passei
Que o meu bom dia teve que se disfarçar
Procurei o teu rosto, mas não achei
Quem sabe publicavas que me ias abraçar
Isto das redes sociais não é dito e feito
O que com regozijo muito se apresenta
Não é necessariamente o que faz o sujeito
Que na boa educação apenas aparenta
Andam a publicar sobre a vida boa
E dos amigos que dizem ter
Eu cá se sonho com Lisboa
Primeiro penso se tenho como me manter
Vida boa é ser feliz
Ter paz e aconchego no coração
Não é atirar fogo em perdiz
Nem achar que se destaca na multidão
José Gomes Ferreira
* sobre as aparências e as pessoas, que muito simpaticamente dizem bom dia nas redes sociais, mas na rua nos ignoram.
Gosto de gente que me escuta e fala com brilho nos olhos
Como quem homenageia a minha força
E me faz acreditar no respiro da alma
Gosto de gente cativada pela minha vontade
E que reforça o sentido da sua experiência
Gosto de gente sem pressa e com tempo para argumentar
Gosto de gente com um sorriso nas palavras
E que das narrativas cria melodias
Gosto de gente que aprecia o silêncio
Sem se distrair no sopro do vento e nas circunstâncias
Gosto de gente espontânea
Sem a representação do aroma ou obrigação social
José Gomes Ferreira
José encara bem o teu destino
Não vivas de favor
Esse teu gosto em ser nordestino
Tu sabes que é por amor
Esse teu encanto pelo sertão
Não é Sol como peneira
Tiveste na vida muito apertão
Nunca esqueceste a tua Beira
Junta a memória com valor
E a distância com saudade
Vais ver que não te falta calor
Nem perdes a tua dignidade
Se encontrares uma rosa silvestre
A florir no meio do mato
Venera a beleza terrestre
Não a escondas no anonimato
José Gomes Ferreira
Por isso te dizia
Que o amor não chegava
Era tudo fantasia
Quando a gente se enrolava
Assim mesmo te contava
Como o tempo passa
Só o vento nos ligava
O beijo e abraço se ultrapassa
Amar não é apenas querer
E deixar embalar os dias
É também ter a quem recorrer
E não ter medo de loucuras sadias
Ao lembrar a tua ausência
Não penso no que perdi
Faltava talvez consciência
Mas também nisso aprendi
José Gomes Ferreira
Os meus olhos não precisam de pintura
Nem necessitam disfarçar
Levam da alma toda a ternura
E do coração as artes de amar
Os meus lábios são ardentes
São fogo sem labaredas
Ao tocar os teus são mais quentes
Transformam ruas em alamedas
O meu cabelo é grisalho
Mas livre quando despenteado
Nas tuas carícias exalta o brilho
E o seu lindo tom prateado
As minhas mãos são doçura
Com mostras da minha beleza
No seu atrevimento está a loucura
Nos gestos está a sua pureza
José Gomes Ferreira
Só quem é emigrante sabe
A falta que lhe faz a aldeia
A saudade do vagar e do abraço
Como se a rua fosse também a sua casa
Só quem é emigrante sabe
Como é ser um estranho em outra terra
Sentir a solidão a arrefecer o peito
Perder a coragem e não poder dar parte de fraco
Só quem é emigrante sabe
Usar o poder da saudade e do amor
Definir objectivos e metas para viver
Deixar o dia confundir-se com a noite
Só quem é emigrante sabe
Como as lágrimas são também fé
E as noites claras não são amanhecer
Mesmo se destino não é por acaso
José Gomes Ferreira
No Verão ia à fonte de madrugada
Ficava em casa uma manhã por semana
Precisava da paciência sublime das andorinhas
Tinha para encher os cântaros de água para beber
E um pequeno tanque com água para a lida da casa
Em plena estiagem a torneira corria como um fio
Poderia levar vários minutos a encher as vasilhas
Para o tanque não precisava ser da fonte
Tirava água da vala da rua com o mesmo nome
Na época estava limpa e era concorrida
Por vezes ia buscar água a um poço
Uma tia-avó reservava nele água para as emergências
Aproveitava para lhe dar uma ajuda
Na época a rede pública não chegava à aldeia
Eram as nascentes que abasteciam a comunidade
Para a roupa existem duas nascentes com fonte e tanque público
Muitas vezes usávamos o tanque de uma outra tia-avó
Os banhos aconteciam nesse tanque
Em casa uma pequena bacia de alumínio servia de lavatório
Qualquer banho improvisado era de balde
Nas fazendas bebíamos água dos poços
Quando era deitada muitas vezes o risco para a saúde era menor
Assim éramos convencidos da pureza da água bebida em púcaro de barro
José Gomes Ferreira
* É mais uma crónica que um poema.
A fé do português não é por convicção
É por adesão cultural à norma
E mesmo quando em oração
Não deixa de pensar de outra forma
A religião está tão enraizada
Que não se separa de outros valores
Mesmo quando a rapaziada
Perde a humildade e se acham doutores
Não importa apenas se se aceita Deus
Mas como anda o caminho dos homens
Na bondade também contam os ateus
Os mais velhos e os mais jovens
A Igreja não pode viver na opulência
De mãos dadas com a política
Confunde-se sacerdócio com presidência
Não se faz a necessária auto-critica
José Gomes Ferreira
A sesta foi transferida para o baldio
É necessário dar alimento a quem precisa
Vigio uma pequena cabra que fornece leite para a família
O animal não tem medo da estação estival
Come sem parar alguns arbustos ternos
Está ali para comer as pontas e folhas viçosas das silvas
O calor dilata a pele e faz estalar as ervas secas
Escutam-se as pinhas a cair dos pinheiros
Do eucalipto próximo soltam-se também ramos secos
Sento-me numa pedra à sombra de um pequeno sobreiro
Está demasiado calor para comer algumas amoras
As cigarras harmonizam o instante
Escondem até o movimento das borboletas
E a espera pela brisa atrapalhada na Serra
Ignoro o meu próprio receio da presença de répteis
As horas passam e não me dou conta
Sou ainda adolescente, é vagaroso o limite dos afazeres
Mais tarde contam-me que adormeci sobre o céu azul
E que mesmo assim os dias não perderam a normalidade
José Gomes Ferreira
*memórias da vida no campo
Observar faz bem
Mas não é o observar coscuvilheiro
De colocar defeito em tudo
E distribuir informação pelo bairro
Observar como quem tem luz na alma
E faz do olhar o espelho que reflecte
José Gomes Ferreira
Arrancam-me até os cabelos
Cada vez que me supõem
Acham que estão certos e eu errado
Sobre o que na vida eu enfrento
Não sou de me colocar no lugar do outro
Para julgar o seu percurso
Não sei porque tem gente alucinada
Que acha que do meu tem opções
Amizade é sugestão e galanteio
Não é a crítica por achar ter razão
Quando do caminho cada um é que sabe
José Gomes Ferreira
A cerveja está tão cara
O preço não tem comparação
Beber tornou-se uma experiência rara
Ganhou o cinto um apertão
Até o pão e o café
Custam mais de uma fortuna
No essencial não pode ter fincapé
Carne e peixe são cozinhados de maneira oportuna
A carestia é muito grande
Que o preço da água chega a ferver
E até que a inflação abrande
Não sabemos como sobreviver
José Gomes Ferreira
Os avós são as mais altas locomotivas que vamos encontrar
Forças potentes que nos levam ao regresso dos sonhos
E da delicadeza das histórias da vida completa
São as mais altas patentes nos dias de memória
Nos afectos sem barreiras na forma de chamar a felicidade
E no gosto pela presença da companhia dos netos
São pais a dobrar com a serenidade de quem já viveu
São carne e sangue da primeira multiplicação
Amores verdadeiros que chegaram primeiro
E não param de encantar quando educar é uma dádiva de dedicação
José Gomes Ferreira
Quem não se questiona não exercita a consciência
Quem não escuta gosta de pensar que tem sempre razão
Quem não luta acredita que sempre perde
Quem sempre obedece julga que reivindicar é desobediência
Quem não chora quando perde um amor nunca amou
José Gomes Ferreira
O amor é como o vinho
O espirituoso atrai
O encorpado seduz
O leve flui
O carrascão é para os desesperados
José Gomes Ferreira
A vida é uma fera
Uma constante competição
Ao lado sobram flores
Corre o vento e vagueiam as ondas
Crescem as florestas e os rios
Ao lado cresce a empatia
Andamos sem saber desfrutar dos elementos
De viver a plenitude da natureza
E acolher as causas fraternas
José Gomes Ferreira
A luz também se arrepia
Ao entrar solta pela janela
Ao anunciar que já é dia
E surprender com aroma a canela
As carícias que sinto na pele
São as que chegam ao pensamento
Incluem beijos com sabor a mel
E palavras com que me alimento
O coração alegra-se na certeza
De que desejo é felicidade
No destaque que exprime pureza
E se entrega de verdade
José Gomes Ferreira
O vento sobra de rajada sem se incomodar com mais nada
Apenas com a rigidez catalítica dos imigrantes
E a inquietação sonora das mães à espera
E a fala dos vizinhos nos diálogos vespertinos
O vento sobra e deixa um rasto de nuvens também sonoras
Pequenas performances meteorológicas para quebrar a monotonia
E acompanhar com o serpenteado de vozes
Todos juntos aguardam a noite nas portas
Haverá uma jangada que se afasta
E um amor que regressa
O vento não é apenas um doidivanas
Poliniza a vida de mistério e oportunidades
Até as eólicas se inquietam com o vendaval de julho
A brisa suave é como sopro no coração
O sopro puxado é como um abanam na vida
Um espectro de inquietação de tirar o folego
José Gomes Ferreira
É o sopro do vento que se interluz
Parece que o mundo chega de rajada
Não é guerra, é natureza em movimento
Tanto abana que o coração se destaca
E se fizer a escolha errada
Misturando o sal do mar com a ternura
O que fará o vento para sacudir as lágrimas
Do amor que se desenha na areia
É o sopro do vento que se prontifica
Quem não se lembra do seu atrevimento
Tremem as janelas como varas verdes
Da paixão não é preciso dizer mais nada
José Gomes Ferreira
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