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As mulheres da minha aldeia são almas negras de solidão
Corpos gastos no amor que sempre ficou
Roupa escura a esconder a viuvez do pensamento
Aceitam os anos por ser a cura da natureza
Não escondem a exactidão da penitência
As mulheres da minha aldeia são as últimas herdeiras do velho padrão
Conformam-se com o destino e a existência
Rezam pela proximidade dos dias e dos laços
Sentem mais o Verão e o Inverno pela cor do tecido que cobre o corpo
As mulheres da minha aldeia são sinónimo de abnegação
Da paz e saber construído no passado comum
Queixam-se da lentidão da vida de hoje
Já viveram a plenitude da subjetividade perene
As mulheres da minha aldeia são da Beira do fundo do coração
José Gomes Ferreira
Cheguei a colocar os pés nus na terra quente
Da mesma forma deitava água a cabaço
Sempre com receio do nadar de alguma cobra
Na rega era comum acompanhar a água descalço
Um dia espetei a palma do pé numa cana de milho cortada
Deixei a partir daí de arriscar qualquer incidente
Na fazenda usava umas enormes galochas
Torravam os pés em dia de calor intenso
No dia-a-dia usávamos umas botas de couro não tratado
Eram botas de sapateiro que passaram para a linha de montagem
Não tinham qualquer qualidade ou resistência
Para fortalecer o couro usávamos sebo caseiro
Além dos pontos soltos as botas exalavam um odor horripilante
Como cresci rapidamente os dedos soltavam-se entre o couro e a sola de borracha
Abriam autênticas crateras com monstros de unhas grandes e dedos tortos
José Gomes Ferreira
Escuto o rugir da cadeira
E os seios a boiar
Pergunto pelo fim da ladeira
E sobre quem está a apoiar
Observo a luz que ofusca
E a amizade que perdura
Evito qualquer palavra brusca
E o próprio buraco da fechadura
Deixo na paz o coração
Como quem espera sem dor
Guardo o silêncio da emoção
Se tem vazio não é do amor
José Gomes Ferreira
O jarreta de Santa Comba
Parece um Deus numa cadeira
Mas se muito balança tomba
E acaba-se logo a brincadeira
O Estado nunca foi Novo no agir
Sempre deu mostras de carente
A uns foi capaz de ajudar a fugir
A outros mergulhou-os em aguardente
Obediência não é sinónimo de paz
Guerra não é um exercício de desenvolvimento
Em ditadura ninguém tem sorte por ser capaz
É por contar com encobrimento
Podem até idolatrar a PIDE e o Cardeal
O passado é lindo para quem não o viveu
Podem beber cerveja e dormir no areal
Só que nem todo povo sobreviveu
José Gomes Ferreira
Um bom vinho é um degredo
Para os homens que não sabem amar
Desconhecem que saber beber é segredo
E que o vinho sabe melhor ao beijar
Beber muito não é fartura
É falta de maturidade
Toda a paixão requer ternura
Não vá perder a reciprocidade
Um copo de vinho e duas estrelas
Completam uma noite de luar
Tudo mais são sentinelas
E um bom prato para acompanhar
José Gomes Ferreira
Não se esconda na sacristia
Apareça no posto de comando
Não seja figurante dessa Revolução
Questionar os Cravos de Abril
Não revela só gostos florais
Diz mais sobre o seu carácter
Que sobre as escolhas de flores
Abril é o mês do povo e da liberdade
Esse povo que não largou a luta
E trocou o sangue e a bala por amor
José Gomes Ferreira
Durmo na pressa de chegar o novo dia
Movimentado no silêncio das escolhas
Já não fico à espera da diferença
E que a liberdade seja igual na luta
O pão que agora se perde alimentava famílias
Já não fico à espera de paz e justiça
Derrubamos a floresta e afundamos as minas
Não vestimos mais as calças rotas
Nem as botas a ver-se os dedos no chão
Ligo-me na escolha dos jornais
Já não fico à espera do carteiro que buzina
E das notícias que estão para chegar
Não usamos mais as ruas para caminhar
E o movimento não fertiliza as conversas
Vivemos de conversas digitais e abraços prometidos
José Gomes Ferreira
Chego na Lua e vim te ver
Saio da Terra sem querer
São as nossas fases e posições
O Sol reflectido e os clarões
Haverá convergência das marés
Gosto também de carícias nos pés
O amor escondido nos ciprestes
E a sedução pelo preço das vestes
Será sempre difícil chegar
Viajo para tanto lugar
Qualquer faísca pode ser fogo
É tudo tão real que parece um jogo
José Gomes Ferreira
Sou como brisa fina
E borboto de videira
Se me falam em doutrina
Peço logo a saideira
Sou como flor de pessegueiro
E vigor da natureza
Tantas vezes sou passageiro
E ainda sigo na incerteza
Sou como água do rio
Tão puro e doidivanas
Guardo sempre um pouco de brio
Mesmo com o mundo de pantanas
José Gomes Ferreira
Ando de um lado para o outro como quem procura o destino
E escolhe as virtudes para afirmar a liberdade
Sigo no pára arranca dos acontecimentos
E das incertezas que inquietam quem duvida da natureza divina
Paro ao passar pelo cruzeiro e questiono as minhas decisões
Estou exausto das repreensões minimais
Chamam-me para apagar fogos e esconder a lenha
Chamam-me para fazer uma revolução
Depois mandam calar-me
Tudo deve progredir no favor dos deuses
Não devemos questionar a obstinação das elites
Andam a espalhar panfletos pela consciência
Usam aviões com asa de gaivota com longas mensagens escritas
Servem-se da vulnerabilidade de quem vive da esperança
Além dos panfletos distribuem bibelôs e aguardente
Não vá o remédio não funcionar
Anunciaram na rádio que haverá jogo do campeonato
Talvez os panfletos sirvam para aquecer os ânimos e manter a cerveja fresca
Quem sabe vão escolher um representante para erguer os braços
E uma camisola para representar os temperos
Fica a promessa que não haverá água nem caldo de galinha
Os adeptos querem-se saudáveis
Capazes de venerarem a carne e a bebida
Os fracos ficam em casa a ver os anos passar
José Gomes Ferreira
Chamo amiúde o balanço da serra
O vento que no Inverno é gelo e no Verão é Suão
Chamo em silêncio a névoa sobre o rio
O fogo que atravessa as margens e inquieta o coração
As pedras e caminhos que são as minhas testemunhas
Chamo pela paz e dias lentos
Com o corte no ar deixado pelos aviões
A rotina da gente que ainda circula
Com aumento nos dias de procissão
E no curto Agosto junta os emigrantes
Chamo todos para ver quem falta
Lembro até das horas dos animais
Junto todos nas conversas que deixei
Chamo pelo Sol que se põe lento
Lembra no horizonte o amor que encanta
A minha alma revive
E os meus olhos brilham por não conhecerem a solidão
José Gomes Ferreira
Procurei o vento e a flor tinha germinado
Procurei o pólen e a planta tinha crescido
Lavrei a terra e o amor tinha acontecido
Alimentei o gado e a perdiz tinha fugido
Semeei o trevo e a sorte estava lançada
Bebi água e as lembranças ressurgiram
Abri a janela e a Lua e o Sol foram brilho
Prendi o coração e as estrelas aproximaram-se
Contei uma história e os olhos foram luz
Tenho tanto para repetir antes de esquecer
E muita coisa nova que queria fazer
Muitas outras coisas tenho vontade de conhecer
Que a vida permita continuamente ser construída
E a descoberta seja mais forte que a inquietação
José Gomes Ferreira
Não são apenas aldeias vazias
E o mato que arde ou é revolvido pelos javalis
Não são apenas casas de granito e portas fechadas
Ruas a contornar as passagens ou o vento de rajada
Não são apenas saudades e nostalgia
E memórias de quem não tem pressa em chegar
São também laços e tradições
Flores a cobrir a calçada em dia de procissão
Amor pelas vivências e pela criação
São também fontes de água pura
Histórias e mitos de quem enfrentou a natureza
Privações de quem teve de emigrar e regressou
Gerações inteiras que se criaram e correram mundo
São também os lameiros férteis e as vinhas
A produção que sempre deu pão
As eiras nas imagens de quem viveu os acontecimentos
E o arraial de gente que se juntava na festa ou na aflição
José Gomes Ferreira
A visibilidade dos problemas pode exacerbar a verdade
As sequelas dos dominados não devem ser servidas aos cães
A leitura da bancada é para o latir da matilha
Que saliva quando lhe indicam um inimigo
Tem muito comentador que destila veneno
E surge como profeta na entrada do inferno
Não existe justiça quando beneficia desconhecidos
E quando a objectividade é prisioneira das sondagens
José Gomes Ferreira
Continuarei no meu jeito discreto de ser
A publicidade não traz um novo alento
É na calmaria que se acha a paz
E se deixa espernear a imaginação
Continuarei com o amor a não me julgar
A escolher como se desenrolam as narrativas
Deixarei a janela aberta ao Sol nascente
Sem receio do vento e da tempestade
Continuarei a corrida para o mar
No significado que a vida tem de luta e beleza
Como na faina o constante querer
E além do resultado viver o gosto do encanto
José Gomes Ferreira
Repito-me e não paro
Atiro a tinta nos umbrais
Quero esconder os filamentos e o envelhecimento
Atiro com tudo nas superfícies
Os anos têm passado ligeiros
Porém marcam de crostas as paredes
Tenho escolhido palavras para pintar os dias
E dizer do amor que a espera é sequência
Deixo folhas soltas pela mesa
Algumas marcadas por café quente
Escrevo em blocos de notas também de papel
O instante das palavras traz lisura ao pensamento
Gosto da inversão do movimento
Da precipitação que por vezes cai forte
E nos deixa à espera que passe a tempestade
Atiro também tinta na tempestade
Como que a passar um pano limpo na vida
Para possa recomeçar no simples erguer dos braços
José Gomes Ferreira
Finjo-me surpreso
Os beijos são melhores que vinho
E fazem arrepiar a pele
Finjo-me frágil
Como cântaro de barro
E amor tributado
Finjo-me esquecido
Como relógio sem dar horas
E insecto que hiberna camuflado
Finjo-me ausente
E distante da realidade
Quando dou atenção ao que me cativa
José Gomes Ferreira
Subo no monte devagar
Que as pernas já não ajudam
Ando à procura da felicidade
E dos dons da natureza
Escolho fontes de água pura
E paisagens de cortar a respiração
Deixo a imaginação sobre as nuvens
E os deuses nos altares populares
Compro amor por mel de abelha
Troco beijos com aroma a urze e rosmaninho
Vendo resultados pela experiência
Troco abraços por ramos de roseiras
E pelo vento a sacudir os pinhais
Subo até ir da infância aos anos correntes
Guardo a história de cada etapa
Admiro quem me tem seguido até hoje
Da terra vai sempre brotar uma árvore ou uma flor com a beleza que falta
E o ciclo segue sempre para não se perder o encanto pela vida
Mas a maior beleza vem dos laços que permanecem
José Gomes Ferreira
Não chego a tanto no meu impulso
Mas o poeta é o repórter do coração
E das desobediências das tradições
O mundo está a ficar obeso de promessas
E acomodado aos prazeres da imagem
Sacode a consciência para não ter de pensar
Fecha os olhos para não ir para além do corpo
O poeta deixa um guião de latência
As soluções estão na acção de todos nós
José Gomes Ferreira
Falam em valores que se perdem
E que outrora éramos todos felizes
É verdade que sorrir na ignorância nos deixa soltos
Sem as inquietações da cidadania e do mundo moderno
É verdade que hoje a visibilidade da corrupção é maior
Mas como poderíamos ser felizes com os pais emigrados
Como poderíamos ser felizes a matar e ser mortos
Transmitem a ideia de uma felicidade baseada na grandeza do império
Uma narrativa de um passado longínquo sem direito a emancipação
Exaltam a Pátria e a Senhora de Fátima
Mas como poderíamos ser felizes se as mulheres eram submissas aos maridos
Mas como poderíamos ser felizes se a entrada no café da vila carecia de autorização
A felicidade depende de paz e amor
Mas passa bem sem o massacre moral da obediência e vassalagem
José Gomes Ferreira
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