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Precisamos revirar por vezes o lugar de fala
O nosso conforto alegra as nossas categorias
E exalta o gosto embutido nas práticas
Porém o nosso lugar de fala é também de soberba
Nem sempre se entrelaça com o sentido da comunidade
Precisamos ser o outro para dar graças pelo que somos
E sobretudo para colocar o coração onde anda a frieza
O individualismo gera mundos desconexos
Não pode ser cada um por si
A Humanidade faz-se de vínculos e solidariedade
Não pode ser feita de narrativas com as certezas que queremos só para nós
José Gomes Ferreira
O sorriso das crianças é para alegrarem o mundo
O sorriso dos velhos é por gratidão do já vivido
O sorriso dos políticos é por ter chegado dinheiro na conta
O sorriso dos amantes é por se repetir o reencontro
O sorriso dos professores é por serem lembrados da sua influência
O sorriso dos pobres é por terem quase tudo nas expectativas de felicidade
O sorriso dos bêbados é por se convencerem que conheceram o paraíso
O sorriso dos turistas é por prosseguirem viagem
O sorriso de uma mãe é pelo sucesso dos filhos
O sorriso de um trabalhador é pelo reconhecimento e do salário
José Gomes Ferreira
Não se iluda na pressa, tem a luz e a escuridão
O palco dos presentes e os bastidores
E quem não escolhe apresentar-se
Nem sempre quem conta tem mais visibilidade
A vida tem mais lados que o cubo
A guerra escolhe conveniências
É tamanha informação para falar
A gula é também pelo comentário
O que se destaca não é o que chama a atenção
Andam a vender ideias para a escolha
E nós contentes seguimos na procissão
Porém a Terra gira e transborda
O bairro e a cidade também se movimentam
O que uns debatem ou aplaudem para outros não é prioridade
O povo quer pão e emprego, o político quer aparecer
O sonhador quer amar e ser feliz, o capitalista quer lucrar
José Gomes Ferreira
A aldeia é cortada pelo vento que sopra da Serra
O relógio da Igreja dá as horas com um laço
O som arrasta-se entre chaminés e some
Sente-se o arrepio até nos ossos imaginados
Nem os gatos vão à missa
O povo fica a bater o dente
O frio chega também aos campos
A camada de geada tem gosto a coração
Quem se atreve vareja a azeitona das oliveiras
Os românticos espreitam a nostalgia da água a correr nos ribeiros
A porta range e o fogão deita fumo
O melhor agasalho é entre paredes
Outrora juntava-se água quente e aguardente para aliviar a tormenta
Não havia tantos medos e tempo para gastar preocupações
Também não havia conforto, a resistência era a fé do povo
Glória amarga a de quem enfrenta privações
José Gomes Ferreira
Actualmente o Natal rima com exuberância e com o espectáculo da fartura
Tantas vezes alheio às desigualdades e invisibilidade
Quando não com solidariedade de época e amizade retirada do esquecimento
Vivi o Natal do sorriso das velhas na consoada
Da simplicidade de juntar três irmãs para comerem bacalhau e filhós à lareira
Mantive a expectativa de não receber apenas um par de meias e umas cuecas
E que tivesse chegado de França uma lembrança doce e eventual roupa nova
Vivi também o Natal da fogueira no centro da aldeia
O lugar que sempre junta as famílias na definição da comunidade
Agora dizem que o Natal é de fé e família
Muito mudaram estes conceitos, não vivem sem o charme do consumo
José Gomes Ferreira
Medem-se muito os actos pela pertença
Pelos vínculos de catálogo
Sem que isso defina carácter
Nem acrescente qualquer certeza
É um acrescento por adesão e imitação de carisma
Uma reposição de classe sem critério
É pressão normativa para a escolha
As pessoas são válidas pela sua essência e trajectória
Não são marcadas pelas leituras de moldura
A sua essência não é marcada pelos laços de sangue
Nem pela pertença clubística ou dogmática
Essas divisões não são integradoras
Servem para prolongar a subjectividade da tradição
E arredar da distinção todos os comuns
José Gomes Ferreira
Já não me arrepio, esteja frio ou calor
Estou incólume às versões exteriores
Fico parado a aguardar o vento
Se sopra forte já não lhe chamo tempestade
Chamou-lhe aragem do costume
Também já não corro, nem limpo as lágrimas
Deixei de amar loucamente e de aguardar pelas expressões do abraço
Agora não finjo escolher
Apenas fico quieto sem pensar nas palavras
Não dou troco ao próprio monólogo
Nem ao volume das canções
Aceito tudo por estar tudo bem
Não por desinteresse ou depressão
Nem por desistência da luta
Agora deixo vencer o hábito
Só não o uso como remédio para tudo
Aceito-o ao aceitar-me fora de padrão
Serenidade não se confunde com conformismo de irritação
José Gomes Ferreira
A minha fé não vem dos deuses
Nem das fantasias milagrosas das ideias
Vem da paixão e da necessidade
Da homenagem aos antepassados e aos presentes
Talvez por isso pouco me importa o que ajuizam
A minha devoção é pela memória e o que possa transmitir
Ainda assim não ignoro as tradições
Nem desobedeço aos padrões
Apenas não me ajoelho para venerar certezas milenares sem questionar o entendimento
A minha fé vem do coração
E do entrelaçar com a bondade da natureza
Não da escuta repetida de palavras de ordem
José Gomes Ferreira
Hoje é dia cantado em verso
E eu finjo que me esqueço
Sem saber parar nas conclusões
Feliz naquilo que quero mais
Hoje é um dia mais para viver
E dar a palavra ao sentimento
Sem complicar nas escolhas
Voto nos lugares que desconheço
Hoje é mais um dia supremo
Tal como todos os dias contados
Nos meus gostos e formas difusas
Quero apenas seguir com serenidade
José Gomes Ferreira
Já não deixo que me soprem ao ouvido
Nem que matem o amor sincero que resguardo
Escondo-o para não sentir amargura
Não deixo que a sombra traga apenas frescura
O Sol que aquece também ilumina
Já não faço balanços, tudo o que acontece soma
É um acrescento mais ao trajecto que o destino me reservava
Nem sempre as forças chegam e a missão se cumpre
Não busco a eloquência que o sucesso impõe
Peço apenas forças, saúde e vontade para continuar a lutar
José Gomes Ferreira
Tenho no hábito o som das manhãs madrugadoras
Ainda sem o rugir dos impropérios e o aroma a movimento
Nesse entretanto viajo pelo universo e chego a consultar os sonhos
Rebolo entre camadas de histórias e aventuras
Não durmo nas palheiras abandonadas, nem nos colchões de palha
Deixo tudo isso para as lembranças e narrativas
Na verdade convoco gentes e episódios para escalonar o futuro
Cruzo temporalidades com a expectativa redundante da actualidade
Situo-me na própria geografia, porém, chego a beliscar os pés para saber onde estou
O coração dá tanta volta que é necessário situar-se para apaziguar
Dizem-lhe muita coisa, esperam dele coisas que não dizem
Nem mesmo a consciência tem tanta certeza das referências
O que importa é não ficar parado nas camadas
Se não abrir os olhos não sentirei a luz e a energia
Tem também os outros sons da situação
A catarse harmônica do recomeço e da vontade de usar as primeiras palavras
Percorro primeiro algumas páginas do novo dia
Depois abraço e beijo o contentamento por chegar aqui
Tudo mais acontece nas horas a que me entrego por paixão
José Gomes Ferreira
O Natal não é certamente o sonho dos poetas, nem dos acolhidos na nostalgia da distância. Talvez por isso ainda não me tenha dado conta da quadra que, digamos de passagem, já não era a mesma sem a incandescência das almas de sangue. Quem mora nas grandes cidades segue o Natal das narrativas da televisão, quem mora no estrangeiro e não vê televisão, a minha actual condição quer é ver no passar dos dias a felicidade concretizar-se.
O Natal mudou a partir do momento em que se esqueceu o Menino Jesus para venerar o Pai Natal. Tal não aconteceu apenas com a mudança dos símbolos, mas com a passagem do Natal ancestral ao Natal da globalização, no qual todos recebem prendas, são felizes e lindos. O meu Natal continua a ser o das imagens da fogueira, que felizmente ainda se mantém no largo da aldeia. Afastei-me dos outros Natais, gosto de dias comuns e gente verdadeira, não da celebração que dá jeito e da misericórdia.
Lembro do musgo e do pinheiro que ia buscar para ter a casa em jeito de pisca-pisca. Na primeira metade da década de 1980 passei a dormir em outra casa e na época eram novidade as iluminações de Natal com formatos não tradicionais. Aderi durante alguns anos pelo gosto das cores e brilho da estação. Depois parti para muitos lugares, a fé dos outros também partiu, a religião perdeu a fé, transformou-se em mero ritual sem consolo.
Hoje o meu coração procura apenas paz interior e boa relação com os meus semelhantes. Não haverá Natal se nós olham no atrito da soberba ou com a vontade apenas de preencher dificuldades pessoais. Cruzei muitos dias de riscos e dificuldades esse último ano, o que mais me entristece é a certeza dos outros pelas minhas opções e desagrado por arrastamento de decisões que nunca tomaram. Para os outros somos sempre culpados das acções adiadas e do protesto pelas reivindicações legítimas.
A magia do Natal está no que nos une e nas recordações do passado. Não precisa ser tão tribalista e ritualista. É a estação da gula por excelência, assim como de reactivar a lembrança de amigos e semelhantes. Gostaria que fosse Natal todos os dias. Não apenas no que de laços une as pessoas separadas. Mas pela oportunidade de renascer e ter uma história para contar cada manhã, assim como um amor para colocar na imaginação.
O tempo encurta com a pressa do meio
Somos pressionados a não passar vergonhas
A não sermos julgados por expectativas alheias
Tem quem viva a nossa vida nos considerandos
Quem sabe deixando de lado a vida própria
A pressão moral nem sempre é um ensinamento
É o julgamento de quem prescreve
E tantas vezes abdica de outros atributos
O tempo encurta e julga
Não deveremos vacilar
Tem desafios e paixões que superam tudo
Até mesmo as melodias de sereias a fingir
E utopias que a civilização teima em seguir
Tem dogmas que dão conforto
Porém, a vida não é apenas aceitação
É paz da alma com a consciência
Esforço e carácter sem medida
É brilhar sem ofuscar e gerar fricção
Exactamente porque o tempo encurta
A nossa missão é seguir sem incomodar
Sem pisar os pés fora da dança
Quem compete é atleta
O cidadão coopera e anima
A felicidade vem dos laços e memórias
Os espelhos servem apenas para retocar o ânimo
O mapa a que o destino nos leva também somos nós a traçar
José Gomes Ferreira
Por cada desiderato uma imagem tua
Uma visão repentina e um abraço da imaginação
Assim chegamos onde a terra nos acolhe
E o aroma se junta ao colorido da paisagem
Tem satisfação no simples viajar
No caminho dos sonhos traçado nas nuvens
Desenhado como no tempo de adolescentes
Por cada palavra segue-se um impulso
Ganhamos firmeza nas decisões
A distância fica mais curta no silêncio
O olhar cruza-se só pelo bater do coração
Andam mensageiros no céu que trazem e levam emoções
Cartas que idealizamos na paixão e escrevemos nas linhas do pensamento
José Gomes Ferreira
Talvez deva esperar e subir novos degraus
Ter voos mais altos nas escolhas
Paixões longas no percurso
Talvez deva respirar e deixar amanhecer
A pele ainda arrepia da indolência
E fica acordada na facilidade nocturna da recordação
A ponto de antecipar os primeiros raios solares na aproximação
Talvez deva abraçar todo mundo e dispersar a gratidão
Como quem lança milho manualmente à terra
E não tenha a experiência exacta do lançamento
Talvez as estrelas sejam o amor que preciso
A paz e contemplação oriunda da natureza
Deixada ao gosto do olhar livre de orações e normas
José Gomes Ferreira
Não apenas é o Brasil que não é para fracos
A contemporaneidade suprime os fracos
A televisão incita a eliminar o elo mais fraco
Usa o entretenimento para institucionalizar latências
Todos riem sem absorver tamanho alcance
Os mais fracos são para ajudar
Para esticar a mão perante qualquer vulnerabilidade
O Homem perfeito só existe no ego de quem quer para si toda a luz
Todos nós apresentamos forças e fraquezas no percurso
Também não entendemos de todos os segmentos
Deixar de lado elos mais fracos é o que fazem as ditaduras
A Civilização é feita na consagração da fraternidade
José Gomes Ferreira
Guardo tantas memórias que poderia contar a história do universo na parcialidade do encanto do percurso individual
Contaria duas histórias para que fossem lidas
Uma com a narração do já vivido e partilhado
Outra com o impulso que a imaginação deixa nas histórias felizes
Poderia ainda contar a mesma versão das memórias narradas por quem as viveu comigo
Seria um multiplicar de páginas de honras, saberes e recordações
É isso que falta ensaiar com os nossos idosos
Deixar de os armazenar cuidadosamente em silêncio e criar postos de escuta e aprendizagem
Não é necessário folhear todas as páginas que marcaram as suas vidas
O dom da escuta ganharia brilho ao dar voz aos desafios e processos
Ao enredo comum das almas situadas e à mestria e dedicação dos seus actos
Ao génio esquecido nas rugas e nos olhos curvos da idade
José Gomes Ferreira
Não é para os teus braços que corro
Nem para fantasiar os teus sonhos
Não por sentir limitado o movimento
Nem por lhe evitar essa expressão
Passou o tempo do impulso
E da procura de vitória no reencontro
Sou luz que se acerta com as estrelas
Não tenho paridade no despertar
Ajo pela delicadeza da vida e veneração
Não falo de amor para fazer uso dos enxovais
Pouco importam os trapos guardados
O que importa é a celebração da plenitude recíproca
E do adeus com retorno à janela
Não sei o dia da manhã para planear o matrimónio
O que importa não é a escritura do vínculo
É a coerência e dos actos com a realidade.
José Gomes Ferreira
Actualmente escrevo sem peneira
E também não uso nenhuma varanda envidraçada
Não tenho planos ou disfarces
Fico satisfeito com a chegada da luz e a manutenção da lucidez
Rejeito igualmente os devaneios estéticos e os pedestais de classe
Tem poesia que se tornou ornamento e posto de socialização
Continuo a vergar-me ao silêncio e ao gosto pelo invisível
Não deixei de gostar dos orgasmos da terra e das palavras
Procuro é que cada dimensão mantenha o seu lugar
Não me quero ocupar da liderança da fanfarra se tenho que ir buscar água à fonte
José Gomes Ferreira
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